#2: A história secreta de Londres e seus humanos escondidos
Uma lancha cruza o rio Tâmisa e um velho toca uma gaita de fole. Ele usa um kilt xadrez, nas cores vermelho e preto, e tem um bigode grosso e grisalho. O queixo com fios prateados está pressionado na entrada de ar do instrumento, por onde pode assoprar. A ponte Westminster está cheia de turistas, como de costume. A primavera é quase verão para os europeus. O clima é mais gentil do que o verão e o inverno - e é uma estação sem o presságio de que dias amenos ficarão para trás, como o outono. O vento, porém, é gelado o ano todo e a previsão do tempo estima que a temperatura vai diminuir. A notícia é péssima para os ingleses. Muitos foram para o litoral no feriado de Páscoa e milhares vieram em aviões por Gatwick, Heathrow ou no trem subterrâneo de Paris embaixo do Canal da Mancha. A paisagem é pálida: o céu é branco sem nuvens. O rio sem peixes é marrom como a cor do Parlamento, como o Castelo da Cidade Velha e como o Big Ben e só se diferencia dos ponteiros dourados do relógio. Os serviços públicos essenciais de Londres, por outro lado, têm cores quentes: as cabines telefônicas abandonadas, os ônibus de dois andares, o metrô. São vermelhos. Há também o moderno e incolor: os prédios espelhados do mercado financeiro na Cidade de Londres, o prédio Gherkin, a gigantesca roda gigante diante do Tâmisa. Uma placa explica que as primeiras pontes londrinas foram erguidas pelos romanos. Outra lembra o Grande Incêndio de Londres em 1666 e dos antigos monarcas que imperaram na Inglaterra e viviam nos castelos dos arredores e ordenaram tributos, prisões e decapitações. Os ingleses brancos continuam pálidos como os reis das gravuras, mas os indianos, os paquistaneses, malaios, jamaicanos, quenianos e nações do extinto império britânico deram à capital imperial uma comida mais saborosa e pessoas mais bonitas. Um deles é um indiano que trabalha em uma mercearia em Camden Town e há dois anos largou o cigarro. "Eles são muito caros aqui", justifica. Um Marlboro custa 13 libras, ou 80 reais. O valor compra uma sacola cheia com camisetas e calças usadas na rua Brick Lane, onde as peças são expostas no chão ou em araras que balançam com a ventania aos domingos, como em um grande espólio de guerra. Na mesma via há uma loja cor-de-rosa onde doces são vendidos - balas, chicletes, chocolates, gomas de mascar - comandada por um indiano que berra com os colegas de trabalho, embora nenhum pareça remotamente ofendido. A voz do homem diminui e o rosto se retorce de maneira penosa para ser gentil ao ser pago com moedas, notas ou cartões que se embolam entre seus dedos grossos. "Ok. It's 1 pound", ele diz. Do outro lado da calçada, um palestino e dono de uma kebabaria fica em dúvida se os novos fregueses que entram em seu estabelecimento são suecos ou brasileiros. "It is sound very similar to me", pontua. A dúvida é razoável. Na Brick Lane as nacionalidades são adotadas por qualquer um afim de descolar um trocado com turistas exageradamente bem arrumados e sem noção dos preços cobrados; um homem negro mexe um caldeirão com feijoada e é rodeado por coxinhas (R$ 37) e uma bandeira do Brasil. "Que saudade da feijoadinha", um sorridente casal brasileiro diz para ele. O homem negro os olha, olha e responde. "Yeah, and I've got a lot more", sem entender uma palavra do que ouviu.
Na estação Victoria, cabines instaladas uma ao lado da outra vendem passagens para trens de longa distância, ônibus, metrôs e bondes. São dedos que destacam papel e os lançam rapidamente por uma pequena abertura no vidro enquanto se ouve o trotar de milhares de passos apressados para não perder o trem. Um funcionário da estação corrige o sotaque dos turistas que chegam, como um batismo forçado. "ECTON? You mean ACTON town?", pergunta. Ele dá as direções até o metrô em direção a Acton, mas é impossível entendê-lo: ele fala rápido demais e sabe disso.
Em Soho há um bar quase secreto. Sabe-se que existe e o endereço é conhecido. Há fotografias de festas ali, mas poucos conseguem entrar. Pode-se apertar a campainha insistentemente, bater, esperar, gritar, bater palmas. A porta permanece imóvel e indiferente. Em Camden há um pub caindo aos pedaços. É comandado por um casal de ingleses com bochechas avermelhadas, como o Pikachu ou qualquer turista branco no Rio de Janeiro. "O que você me recomenda?", pergunta uma cliente na pesquisa de um pint. "Eu recomendo você não transar com galinhas", responde o dono do bar. Os pubs são sempre iguais e nisso parece existir algum tipo de tradição: o mesmo humor de bêbado, o cheiro, o preço, a mobília, as torneiras de Guinness, o quintal aos fundos. Nos pubs a água da torneira é sempre aquecida e sempre tem um velho no balcão que leva horas para tomar um pint, que esquenta dourado e intocado à sua frente. Em Acton Town, todos os dias um velho se senta em um pub e ali fica por horas, em todas as horas do dia. Devido à aparência física e certa aura de inconformidade reprimida, o apelido do velho é Karl Marx. Ao seu lado, um homem negro com óculos de hastes grossas repete o mesmo ritual: toma um pint de Amstel e assiste a uma série da Netflix no celular. Todos os dias, assim que anoitece. Existem 47 mil pubs no Reino Unido. Em um deles, trabalha uma neta de um brasileiro com uma avó peruana. A funcionária nunca esteve na América do Sul e, na verdade, parece adaptada com a Europa. "The weather is good these days", ela diz sem qualquer ironia. Fazia seis graus do lado de fora.
Londres é uma cidade de coisas que não pertencem a ela. No Museu Britânico há uma porção de múmias egípcias, estátuas persas, gregas, romanas, metais vikings, objetos medievais, afrescos, porcelanas, moedas minúsculas e bustos incolores. É uma visão interessante, as múmias. Elas parecem prestes a levantar, como num velório, e mais de uma delas é anônima. O anonimato as torna em algo lembrado e esquecido, histórico e sem história. Eu gostaria de ser lembrado sem que qualquer pessoa lembre quem eu sou? Os impérios, como o brasileiro, tem fascínio em comprar ou roubar múmias egípcias, ainda que de desconhecidos. Até hoje as múmias passam por radiografias que revelam órgãos quase intactos. Mas existem múmias que não precisam de nome ou título: são as múmias de gatos, embalsamadas e bonitinhas. É como se tivessem vivido eternamente inútil e sem a preocupação em criar uma máquina a vapor para viver para sempre, como fizeram os ingleses e os egípcios e suas técnicas e feitos.
Os ingleses têm o desejo de serem úteis, funcionais. Eles não inventaram o relógio, as horas ou as coordenadas, mas impuseram as métricas para o planeta. Desenvolveram as escalas de trabalho capitalista, as estações e linhas do primeiro metrô, o ocidente e o oriente pelo meridiano de Greenwich; transportaram a Rainha para ambientes improváveis, quentes e conflituosos, a bordo de elefantes e súditos empobrecidos; barganharam a manutenção da própria moeda na União Europeia; impuseram uma formalidade de maneira tão rígida que pedem desculpas ou por favor para qualquer coisa mínima e desimportante. Talvez seja o motivo do desejo dos ingleses em serem grandes consumidores da desordem. Amam escândalos e julgamentos públicos. O primeiro-ministro nunca está certo e sempre está em todos os televisores, antes e depois dos resultados do Chelsea, Man City ou Man United e da última briga provocada pelos Hooligans. Muitos querem a guerra contra a Rússia. Muitos querem o fim do combustível fóssil. Os ingleses amam a comédia, as bobeiras, as brigas de bar. A briga é um passatempo. Em uma noite de abril, em um pub afastado do centro da cidade, duas garotas se enroscam, se xingam e saem na porrada. Um grupo se inclina para apreciar a satisfação de assistir a uma catástrofe que não tem nada a ver com você. Ao lado, dois homens bebem um pint e ignoram a briga. Cadeiras são empurradas e um segurança pouco entusiasmado tenta separar a confusão. Enquanto isso, Boris Johnson está na televisão e sofre mais um escândalo que pode força-lo a renunciar. Enquanto isso, um homem negro com óculos de hastes grossas não presta atenção em nada do que acontece nas mesas alheias. Todo dia, repete o mesmo ritual: ele toma um pint de Amstel e assiste a uma série da Netflix no celular.
O homem velho continua a tocar a gaita de fole na ponte Westminster. É um instrumento com apenas nove notas e é muito alto. O cano por onde se sopra não produz o som na hora. O ar, na verdade, enche uma bolsa e aciona a ponteira por onde se dedilha a melodia. Difere-se da flauta, do trompete. O som é fúnebre e exagerado, como o de uma carpideira. Ninguém parece ouvi-lo. Melhor: o som é inescapável, mas a atenção é distribuída pelos tijolos, encanamentos, borrachas, papel, aço, madeira, plásticos, pregos e parafusos que compõem a cidade e seus objetos. O chapéu do homem velho continua vazio. Londres. Um lugar muito mais conservador do que um turista imagina e onde muita coisa fecha cedo. A comida inglesa - peixe empanado, ervilhas e feijões - é horrível e cara, mas os parques são lindos, com árvores com galhos finos e espiralados como raios e por onde esquilos escalam e raposas andam despretensiosamente sobre suas sombras. Os periquitos verdes comem diretamente na mão de quem oferece semente enquanto os pombos, corvos e gralhas são ignorados e parecem pertencer a uma classe inferior. As aves sobrevoam o Green Park e o Hyde Park no final da tarde, quando a água reflete o laranja do sol entre as nuvens brancas e a luz do fim da tarde transforma pessoas em silhuetas.
Os ingleses são mais calorosos do que os moradores de São Paulo. Talvez tenham menos desconfiança e malícia. As mulheres parecem mais livres para flertar ou retribuir o sorriso de um estranho, algo improvável para o Brasil, embora a violência sexual seja o maior índice de violência em Londres. Os metrôs exibem cartazes para proibir o ato de encarar as mulheres nos olhos e constrangê-las - o staring. Em um final de semana de abril, quatro pessoas foram esfaqueadas em Londres, o que foi um escândalo no noticiário e uma piada para o Brasil. As viaturas policiais aceleram pelas ruas a todo momento, com sirenes altíssimas que lançam faroletes azulados contra os tijolos das casinhas. Onde vão? Em uma madrugada fria em Camden, quatro policiais correm e prendem um homem negro por suspeita de tráfico de drogas. O rosto do rapaz é pressionado contra o asfalto gelado até ser algemado. Na cidade há excursões por pontos onde atuaram grandes criminosos, como Jack, o estripador em Whitechapel, ou pelas ruas de East End onde os Gêmeos Kray dominaram as boates, ordenaram assassinatos, roubos e foram amigos de Frank Sinatra e Judy Garland, a atriz conhecida pelo filme Mágico de Oz. Mas aquele homem detido é acomodado na traseira da viatura, que parte anônima.
O metrô de Londres abriga os imperfeitos. Os passageiros que seguem em direção a Heathrow se seguram nas próprias malas gigantescas e os bêbados tentam segurar o próprio oxigênio para se equilibrar. “O que minha esposa vai dizer de mim?”, diz um bêbado que toma o metrô no sentido Cockfosters. Um kebab se desmancha inteiramente em seu colo e as alfaces do sanduíche rolam até o chão. Uma garota com heterocromia - cada olho de uma cor, como o David Bowie - sorri para o bêbado, e os dois fazem uma amizade. Na linha Jubilee, um passageiro embarca com um cão gigantesco, tão grande que é confundido com um lobo ou uma raposa. Ali perto um pai indiano carrega toda a família: a mãe, dois filhos e a esposa e, por precaução, verifica a respiração de mais um bebê no carrinho. (Só por precaução. Ficou tudo bem).
Em Londres, as ruas são todas iguais, mas não tanto. O ponto de ônibus que leva a East Ealing fica em um viaduto perto da rua Station Road, no bairro de Harlesden. É uma área afastada, atendida por uma linha de trem decrépita que, para um londrino, remete a uma palavra: distância. As placas são em outro idioma naquelas ruas: o açougue Gaúcho, o restaurante Mineiro, o Silvia Cardoso Hair and Beauty, o Gil Nails, uma cafeteria chamada Requinte Brazil. Ali a fachada da Associação Brasileira no Reino Unido, a instituição garante disponibilizar advogados, agilizar vistos, documentos, abertura de contas bancárias, passaportes, intérpretes, resolução de burocracias em universidades, declaração de imposto de renda e, fechando a lista de itens na lista de sobrevivência de qualquer brasileiro, uma máquina de xerox. Em Hammersmith, onde surgiu o The Who em meio às gangues de motocicletas dos anos 60, hoje trabalham dezenas de brasileiros como entregadores de aplicativo em motos e bicicletas, que zanzam entre automóveis e ônibus vermelhos. “Fiz três entregas! Só hoje”, se gaba um deles.
A alguns quilômetros dali, no dia 8 de agosto de 1969, o inglês Paul Cole passeava pelo bairro de Saint John 's Wood. Era uma caminhada sem propósito: olhava as casinhas de tijolo e seguia em linha reta. Estava de férias na capital, mas cansado de visitar museus com a esposa. Andar era uma boa ideia: Cole passaria em frente a igreja de Sant Wood e, com sorte, chegaria no parque Regent logo à frente. A caminhada, porém, o cansou. Para recuperar o fôlego, ele encostou em uma mureta e puxou assunto com um policial em uma viatura na beira da calçada. Um papo desimportante de alguns minutos. De longe, Cole notou o disparo de uma máquina fotográfica, mas não deu importância. Estava de férias e Londres estava cheio de hippies. Em 2008, Paul Cole morreu nos Estados Unidos com 98 anos de idade. Graças àquele dia de distração em Londres, Cole foi fotografado na Abbey Road quando parava para descansar e quando quatro homens atravessaram a faixa de pedestre. Um deles, descalço. “Não se anda descalço em Londres”, recriminou Cole.
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