A curiosa história do peixe betta que não quer guerra com ninguém
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Hélio e Negão vivem em um apartamento em São Vicente. O imóvel fica em uma península afastada chamada Ilha Porchat, onde o oceano pode ser visto por todas as janelas. À noite, os dois veem apenas a luz dos navios no horizonte, que chegam e partem do porto de Santos, e escutam o aconchegante barulhinho do mar contra as pedras. Negão é um peixe betta e vive dentro de um pequeno aquário. Quase todo final de semana, o local é alugado para turistas e Negão gosta de ser um anfitrião caloroso. Hélio apresenta os cômodos para os hóspedes, abre as cortinas e mostra o oceano, dita as regras da hospedagem e, por último, como se tivesse esquecido, narra a história do amigo aquático. Quando percebe que tornou-se o assunto, Negão nada de um lado para o outro, como um agrado aos grandes olhos curiosos que surgem pelo vidro. É como um sinal de boas-vindas. “Ele já foi até estudado por cientistas”, orgulha-se Hélio.
Claro, Negão é diferenciado. O betta vive harmoniosamente com outros peixes no mesmo aquário. É algo incomum. A espécie gosta de viver solitária e irritada em cabines individuais por muitos anos. Até um aquário vizinho com peixes pode irritá-lo. Mas não o pacífico Negão. “Ele acredita que os demais peixes são os filhotes dele”, explica Hélio. Nem sempre, claro, ele era tão gente fina.
Os amigos se conheceram em uma festa de casamento anos atrás. Eram 15 mesas enfeitadas com um peixe betta. Muitos morriam na própria cerimônia. Hélio resgatou Negão por uma questão de princípios e, como os noivos, selaram a união naquela noite. “Eu nunca compraria um peixe betta porque eles são provenientes da Ásia, vivem em áreas alagadas para plantação de arroz”, justifica. “Amo os animais e sou contra trazer animais de outras áreas e climas apenas para embelezar uma mesa de casamento”.
No ínicio, Negão era como qualquer peixe betta: lindo e com vontade de matar. Era um brigão. Hélio o separou dos demais peixes para aplacar a hostilidade até que, uma hora, a carência veio. O peixe entrou em fase de reprodução, quando os machos soltam bolhas para criar um ninho e se tornam mais dóceis. O amigo humano aproveitou a breve mansidão para integrar Negão aos peixinhos vizinhos. Os novos colegas de recinto eram lebistes, também chamados de barrigudinhos, tão pequenos e frágeis que são transparentes e vivem por pouquíssimo tempo. Diferente de muito homem, Negão assumiu a paternidade daquele bando de peixinhos que o rodeavam.
As crianças amoleceram o coração do betta, que continuou dócil e gentil passado o período de reprodução. Tornou-se um pai dedicado. O instinto assassino só é acionado quando os filhotes parecem correr perigo.
O betta virou uma atração improvável e mais interessante do que a vista tão bonita do oceano. Com o passar dos anos, o betta mudou de cor, uma característica comum da espécie. O corpo escuro tornou-se vinho e azul metálico; as barbatanas ficaram brancas, como envelhecem os seres humanos. Os lebistes vivem menos, muito menos do que o pai adotivo. Assim, Negão cuidou e defendeu os filhos, os netos e os bisnetos dos primeiros peixinhos que adotou.
Há cerca de dois anos, Negão morreu. Tinha seis anos de idade. “Faleceu de velhice. Viveu uma vida repleta de lebistes e conviveu com inúmeras gerações: acho que mais de 10 gerações”, sepulta Hélio. O amigo humano continuou a cuidar dos lebistes no mesmo aquário. De tempos em tempos, ele lança os peixinhos ao mar, um lugar onde Negão só via pelo vidrinho do aquário. Hoje, lá vivem incontáveis descendentes do peixe betta que foi um enfeite de casamento, um brigão, um anfitrião caloroso e um pai dedicado.
Leitura interessante
Adorei a Refrescos. É um dos textos mais divertidos que já li. Não é exagero. São escritos por Maria Eugênya e Paula Gomes. Vale ler qualquer um, em qualquer ordem, mas recomendo a edição de constrangimentos públicos.
Não sou favorável a indicar gringos - valorizem a newsletter nacional! - mas a Back Row da Amy Odell é fora da curva. O tema é indústria da moda e dá gosto de ver o domínio dela sobre o assunto.
Frase desinteressante
“ Você PRECISA dar preferência para mulheres mais velhas do que para as mais jovens"
(Benjamin Franklin, 1745)
Link desinteressante
Uma investigação desnecessariamente boa sobre os bastidores do grupo Rouge (o da Ragatanga).