A história burocrática de um homem solteiro e (mais ou menos) grávido
O médico Wagner Scudeler queria ser pai. Não queria ter um filho de relacionamento amoroso com outro homem ou adotar, mas ser um pai solo e biológico. Ele me telefonou para informar essa decisão no final de 2018 mas, em vez de alegre, parecia inconformado com o desenrolar do seu desejo.
Em agosto daquele ano, ele pediu uma licença no trabalho para viajar até os Estados Unidos e resolver trâmites da paternidade. No Brasil, “barriga de aluguel” é proibida, então Wagner contratou uma empresa na Califórnia, onde o serviço é permitido.
Quando estava prestes a tomar o avião, ele foi informado de que a gestação tinha sido bem sucedida. Daí, o desenrolar de uma boa notícia o encaminhou direto para uma notícia ruim, como pode acontecer na vida.
Wagner foi demitido pelo hospital 24 horas depois do pedido de licença e, claro, ficou indignado. Para ele, demiti-lo seria como demitir uma mulher grávida, que na lei recebe proteção durante a gravidez. (Por isso, os cornos dos patrões costumam demitir só depois que o filho nasceu e a licença-maternidade acabou, como em um espetáculo de altruísmo).
Eu e Wagner marcamos de nos encontrar em um Starbucks de um shopping para ele me narrar toda e treta e nós protagonizamos uma cena clichê de filme de jornalista. Ele apareceu com uma pasta cheia de documentos, organizou a papelada sobre a mesa e eu tomei um espresso enquanto fazia anotações em um bloquinho. Ali estava o amor futuro dele por outro ser humano, num monte de burocracias, canetas e clips de papel.
Naquela altura, ele já havia botado no pau alguns hospitais onde trabalhava para ter direito à licença-maternidade e movia um processo contra o hospital que o havia demitido para receber seus direitos. Como médico, tinha um salário bacana, mas uma fortuna já havia sido torrada para viagens, contratos e advogados.
O hospital que o demitiu ofereceu um acordo de R$ 100 mil, mas ele recusou e pediu mais grana. No total, ele processava cinco hospitais simultaneamente. Mas, honestamente, o dinheiro nem parecia ser mais a questão: Wagner queria questionar o que, de fato, é ter um filho. A situação dele era inédita no país e também capaz de reformar esse conceito ancestral da procriação.
“Se eu sair perdedor, irei recorrer durante anos até levar ao Supremo Tribunal Federal e, por meu filho, vou até a órgãos de direitos humanos internacionais", me disse. Claro, ele soava irritado ao argumentar, mas não parecia exasperado. Tinha muita clareza sobre o que desejava e com quem deveria brigar.
Para ser honesto, entendi em partes esse sentimento mas, independentemente do que eu achasse, a história era jornalisticamente rica. Tinha tudo: briga na Justiça, um homem obstinado em busca de um fim nobre, as reviravoltas e, claro, um bebê fofo que estava a caminho. Uma pauta redondinha.
Parte do meu estranhamento é que, naquela época, esse comportamento ainda me despertava um fascínio esquisito. Com 23 anos e alguns como repórter, pessoalmente conhecia mais gente disposta a evitar uma gestação do que batalhar para ter uma. Mas o mais legal dessa profissão é a abertura para perguntar sobre tudo que não entendo e assim fiz, de forma bastante genuína.
Depois de me apresentar aquele tantão de papéis, perguntei o que o motivava tanto. A pergunta pareceu desconectá-lo, o rosto se distorceu, se tornou mais suave e ele aparentou calma, vulnerabilidade.
Wagner respondeu que a família não tinha crianças. As duas irmãs, na época com 44 e 46 anos, tiveram perdas gestacionais e não tiveram filhos antes da menopausa, uma barreira biológica cruel com o tempo das mulheres. Em 2014, ele decidiu que também tentaria ter um filho. Uma colega, técnica em radiologia, se voluntariou para uma inseminação caseira, mas ela também teve duas perdas gestacionais.
Diante desse cenário desafiador, ele parecia ter encontrado forças para lutar contra situações que foram impostas por outras pessoas. Até aquele momento, havia sido vítima de circunstâncias sem autoria do destino, mas agora tinha um rosto para retrucar o ressentimento.
Para acrescentar mais informação ao percalço pessoal dele, fui atrás de batalhas judiciais de pessoas LGBTQI+ para cuidar de filhos. Muitas gestações nasciam em modelos familiares ignorados pela lei. Sem surpresa, descobri imbróglios enormes que estavam escondidos em tribunais do país.
Na mesma época da gestação programada por Wagner, uma mulher entrou na Justiça para ter direito à licença-maternidade, mas perdeu o processo. Motivo: quem gestou o bebê foi a esposa dela, não ela. As duas eram mães, mas o juiz mandou perguntar qual das duas amamentava. A mãe que não gerou e não amamentou não foi considerada apta a cuidar do filho em casa. Era um pouco menos mãe, segundo um juiz encapuzado.
O caso de Wagner teve complexidade semelhante. Um juiz disse que ele tinha direito à estabilidade no emprego e 120 dias de licença-maternidade. Mas, tecnicamente, ele é pai. Por lei, teria só cinco dias em casa. (Ou 20 dias, no máximo). Mesmo assim, o juiz entendeu que ele equivalia a uma mãe solo. Em outra ação, uma juíza ordenou o direito à licença-maternidade após o nascimento do filho, mas não à estabilidade na gestação. Afinal, ele não estava grávido.
A interpretação sobre quem era Wagner dependia, em boa parte, de valores pessoais do juiz com o martelinho na mão, do esforço em procurar casos equivalentes e da habilidade dos advogados e suas carteirinhas da OAB.
Até a Constituição de 1988, essa mistura entre vida familiar e profissional era meio sem noção e os nossos terapeutas sabem. Até então, ter um filho era um esquema cheio de inconveniências inevitáveis das quais a lei daria uma mãozinha para mantê-la palatável para o patriarcado, considerado a grande vítima deste infortúnio terrível de ser responsabilizado.
O Código Civil brasileiro, de 1916, criado pela mente de bigodudos, dizia que o homem tinha como obrigação sustentar a casa, os bens da família e podia mandar e desmandar na esposa. A possibilidade de afastá-lo do trabalho soava como proibido. Era o único papel dele no mundo: pagar as contas, ter a casa em dia, fazer mais filhos.
Na primeira versão do código, à mulher cabia manter a integridade “moral” e material da família, e era preciso de autorização do marido para fazer qualquer coisa fora de casa, pelo menos de maneira formalizada. Eram impedidas de trabalhar, somente em casos específicos, considerados desviantes e subempregos.
Por mais de oitenta anos, o código teve trechos revisados, as mulheres conquistaram o direito a trabalhar e até a se divorciar do traste do marido, mas uma nova versão integral só saiu no começo dos anos 2000.
Essas divisões da vida cotidiana são perceptíveis para nós, na casa dos 30 anos. Mas nunca foi espontâneo. Alguém foi lá, preencheu uma papelada, criou situações, fez perpetuar outras opressões e aqui chegamos, com modelos monogâmicos disfuncionais e empregos quase sempre mambembes.
O negócio do trabalho só melhorou com a invenção da CLT nos anos 40, quando a licença-maternidade foi incluída no pacote das novas leis do trabalho. Não foi mágica: mulheres começaram a ter permissão para trabalhar, havia o feminismo, o anarquismo operário, o Getúlio Vargas e mais desdobramentos inoportunos para os patrões, como a conquista de direitos básicos.
Assim, a licença ficou como 90 dias inicialmente, mas os sindicatos continuaram a exigir mais tempo e chegamos aos 120 dias. Em 88, lembraram do pai e também deram direito a ficar em casa assim que o filho nasceu (cinco dias em casa).
Dizem por aí que o Brasil tem uma das melhores licenças de gestação do mundo, mas é melhor falar baixo: algum espectro pode emergir das sombras, mexer os pauzinhos e devolver as grávidas para as minas de carvão. No fundo, a licença-maternidade ainda é considerada um entrave à produtividade, quase uma postura anticapitalista e, após os métodos de contracepção, como uma escolha que pode ser planejada e cuja culpa é atribuída ao funcionário desprevenido.
No entendimento jurídico, as licenças não são exatamente para os pais, mas para os filhos. Nossas leis entendem que o afastamento ou a estabilidade no emprego são direitos da criança, que deve crescer, nascer, ter mamadeira, papinha, fralda e assistir Baby Shark durante 48 horas até pegar no sono durante 30 minutos. Afinal, o bebê não pediu para vir ao mundo para passar esse tanto de perrengue.
Até então, as crianças eram consideradas como quase não seres, como se estivessem em um estágio de transição do qual ninguém precisa se preocupar muito porque logo iria passar e ficaria tudo bem.
Nos anos 2000, a união civil entre pessoas do mesmo sexo começou a ser permitida em estados brasileiros e, em 2015, o STF decidiu que, bem, os homossexuais são uma família de verdade e têm direito a oferecer os direitos necessários a crianças e adolescentes adotados. Mas Wagner era um homem gay solteiro e pai de um filho biológico. O que fazer? Quem ele era nesse arranjo das coisas?
“As empresas e muitas pessoas não entendem o fato de eu querer ser pai solteiro, ser gay e buscar um tratamento para ser pai, ainda mais um pai fora do Brasil. Eu sofro preconceitos que se sobrepõe”, me disse.
Me despedi de Wagner e, nos meses seguintes, ele conciliou processos na Justiça com uma gestação em curso, o que deveria lhe dar um lugar privilegiado no céu das pessoas que enfrentam os dois piores cenários de ansiedade conhecidos pelo homem.
Em abril de 2019, um sábado, ele correu para o hospital na Califórnia. A bolsa havia estourado. No domingo, nasceu Arthur. Um menino perfeitamente saudável. E com dupla cidadania, o que já lhe garantiu evitar a fila do consulado para tirar um visto para conhecer a América.
“A sensação de quando você pega o filho, que nasceu, é que toda minha luta de cinco anos se transformou em algo pequeno do que é ter o seu filho e se sentir uma família”, ele me disse depois do parto.
Os anos passaram e Wagner venceu processos e um dos hospitais lhe concedeu direito à licença-maternidade sem ordem judicial. Ele se fez reconhecido por aquilo que gostaria de ser reconhecido, o que demanda uma energia admirável das pessoas. De alguma forma, ele flexionou a compreensão e ajudou o trem do tempo a continuar a andar, a se repensar e ser mais justa.
Ao observar as fotos de pai e filho, fui levado a refletir sobre a dura jornada enfrentada para que as imagens dos dois pudessem existir. Naquela mesa do café, anos antes, o monte de papéis cuidadosamente organizados por Wagner simbolizava uma promessa, e de alguma forma, também refletia um sentimento de redenção em relação às ausências sofridas no passado. Era uma esperança.
Hoje, sou ainda jovem, mas fui mais. Tive tempo para entender melhor o esforço feito por ele. Wagner queria ter continuidade, ter alguém que pudesse ver as transformações do futuro, assim como hoje vemos aquelas do passado.
Seu desejo era que o emprego o auxiliasse nessa tarefa, não oferecesse uma barreira. Sentimentalmente, ele emanava uma sensação de curiosidade pelo que vem por aí e, limitado pelos próprios anos em que já havia vivido, uma vontade de ter um representante para ver e modificar o tempo. Talvez, seja essa a sensação de ser pai.
No começo da pandemia, Wagner passou o aniversário afastado de Arthur, mas foi voluntário para testar a vacina de Oxford contra a Covid-19 durante o trabalho na linha de frente em hospitais. O caso dele virou um precedente: a partir de agora, juízes, advogados e promotores podem ver a história e usá-la para decidir ou argumentar em tretas similares que acontecerão no país.
Em 2023, os dois comemoraram o aniversário juntos. Hoje, Arthur tem 4 anos e uma predileção por cachorros capaz de convencer o pai a celebrar a festa com o tema da Patrulha Canina.
Leitura interessante
Recomendo assinar a newsletter do Daniel Galera, chamada Dentes Guardados. O último texto sobre inteligência artificial é um negócio fora de série.
Frase desinteressante