A história de cartas escritas por filhos mortos no Facebook
“Estou aqui, querida mãezinha, para te dizer que não morri e retorno para seus braços por meio desta carta”, começa o texto psicografado por um garoto chamado Rafael. Com uns 15 anos de idade, ele morreu em um acidente de trânsito em Cuiabá e os pais passaram a se comunicar com ele do outro lado. “Prometa a mim”, continua, “que as suas lágrimas serão apenas de saudades. Reviva, a vida continua. O acidente foi um pretexto para que eu retornasse”.
O texto está na página “Nossos filhos estão vivos”, uma comunidade no Facebook onde pais publicam psicografias de filhos que morreram. Na maioria dos casos, mortes de maneira repentina, ainda jovens ou com planos em aberto. As cartas são acompanhadas por fotografias, que são compartilhadas e curtidas centenas de vezes.
A princípio, achei o grupo curioso. Nem com a morte estamos livres das redes sociais, pensei, mas a interpretação foi injusta. A comunidade era um dos poucos espaços onde pessoas absolutamente comuns podiam assimilar o impacto difuso e solitário do luto. Muitos deles tinham uma dor irremediável. Outros aparentavam serenidade ao se corresponderem com os filhos mortos, já que nem a morte os separou.
A criadora da página, Nara Nardez, à época uma senhora com 70 anos, nasceu e cresceu em Cuiabá e, nas últimas décadas, recebe cartas psicografadas do filho vítima de um acidente de moto. Marco tinha 21 anos. Nara, portanto, convive há mais tempo com a lembrança sobrenatural dele do que viveu ao seu lado na forma física.
Diferentemente do cristianismo católico ou protestante, a doutrina espírita compreende a habilidade humana de se comunicar diretamente com os mortos. Na psicografia, o contato é feito por meio de carta, que é sempre escrita à mão. Para a publicação no Facebook, os textos são digitalizados, pois não se permite digitar a mensagem espiritual diretamente no computador.
Nara perguntava como Marco estava, se estava bem e se havia boas notícias. As respostas eram sempre reconfortantes. “Ele me dizia que estava num hospital, dormindo tranquilamente, sob os cuidados do avô paterno, que também se foi”, me disse. “Meu filho está sempre muito presente. No fim das mensagens, ele nos agradece por mantê-lo vivo até hoje”.
Qualquer pessoa pode psicografar uma carta, mas o serviço costuma ser feito por médiuns, que se encarregam de transcrever os recados para os familiares em seções privadas ou coletivas. Um médium tem a “educação mediúnica”, uma sensibilidade incomum entre a maioria das pessoas. É como se pudessem sintonizar melhor a frequência emitida por quem morreu ou, na linguagem espírita, de quem desencarnou.
Eu telefonei para Vera Milano, diretora da Federação Espírita de São Paulo, e perguntei se a psicografia era, na verdade, uma maneira de prolongar em excesso o luto. Ela disse que, na verdade, minha suposição era incorreta. As cartas servem como “consolo, ajuda e auxílio”, respondeu de maneira serena. Sem elas, muitos viveriam batendo cabeça por aí, desorientados pela falta de informações dadas pelo destino ou sentindo-se injustiçados pelo sofrimento.
Minha pergunta parecia insensível e tentava enquadrar a fé em um sistema de compreensão científico, como uma psicologia, embora ela também procurasse por alguma honestidade. Por que tentar redesenhar um passado irrecuperável? Por que não seguir em frente e guardar as boas memórias, como muitos de nós somos aconselhados a fazer na morte de alguém querido?
Na época, fazia pouco mais de quatro anos desde que meu irmão havia morrido, aos 40 anos de idade. Eu acreditava conviver pacificamente com o luto e, honestamente, me sentia orgulhoso de ter superado rapidamente o desconforto causado pela morte do meu único irmão homem.
A maneira trágica como ele morreu, a burocracia com que tive que lidar e até detalhes - como a disposição das nuvens pela manhã, a consistência dos assentos de concreto da Vila Alpina, o olhar pesaroso da minha mãe e o de confusão da minha cunhada - são inesquecíveis mas, ao mesmo tempo, me pareciam parte de uma situação incontornável para os vivos. Imaginei que todos os acontecimentos daqueles dias serviriam como dores de crescimento, dores capazes de aprimorar a minha percepção sobre a vida. Evidentemente, era uma conclusão enganosa e imatura.
Nos anos seguintes, minha história pessoal ganhou contornos mais dramáticos do que pude perceber. Eu tinha 20 anos e não tive tempo para falar uma porção de coisas a meu irmão, que teve uma vida tão turbulenta como foi sua morte. Nunca tive fé religiosa para voltar a me comunicar e desenvolver uma nova interpretação sobre quem ele foi em vida, mas compreendi que uma morte inesperada - acidentes, doenças, suicídios - tem uma peculiaridade em relação às mortes por velhice.
Nos casos repentinos, a morte desdenha dos projetos pessoais dos mortos, mas também dos vivos que sobrevivem sob uma perspectiva temerosa de maneira permanente. Um pai que escolheu a paternidade pode deixar de ser pai. Um irmão que deixa de ser irmão. Há um sentimento inconclusivo, um incômodo, que só percebi em mim muitos anos depois, quando reconheci minha soberba em acreditar falsamente na força que havia criado para superar minhas memórias doloridas.
Com a conclusão que cheguei a partir desses episódios de reflexão, me soou natural alguém desejar resolver assuntos e elos com familiares que já se foram. Para aqueles pais no Facebook, a espiritualidade era a melhor ferramenta disponível para alocar o amor dado aos mortos em algum lugar, como num pedaço de papel ou em uma página da internet. Assim como faço agora, quando escrevo sobre meu irmão.
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Em uma manhã de março de 2013, a empresária Micheli Delfino recebeu o telefonema da escola do filho sem saber que seria obrigada a fazer esse exercício complexo de compreender a morte inesperadamente.
O adolescente Gustavo, 15 anos, deu entrada no hospital com amigdalite. Tomou soro, voltou para casa e piorou. No dia seguinte, os médicos o isolaram no hospital quando as convulsões começaram. Era uma meningite. Eu pedi a ele: ‘me ajuda, filho!’. Foi a última vez que ele me ouviu”, lembra. “No dia 19 de março, às seis horas da manhã, ele desencarnou”.
Micheli recebeu seis cartas do filho. Em uma delas, divulgada no Facebook, o texto elogia a mãe e é uma das mais encorajadoras entre as que li. Gustavo dizia ter conquistado a função de orientar espíritos em sofrimento que chegavam no outro plano. E dava recomendações sobre o desenrolar da própria despedida para aqueles que o amaram.
“Estou orgulhoso de você. Vejo que nossos corações aos poucos vão saindo do luto que parece eterno, mas não é. Você tem tomado atitude e tem saído do túmulo do desespero e da descrença e já cultiva a certeza de que estou vivo e sempre que posso eu irei vê-la para lhe dizer o quanto a amo”.
Frase desinteressante
Que texto lindo, Marcos
Lindo o texto! Viver o luto, aquilo que parece impossível, é diferente para cada um de nós. Obrigada por compartilhar!