A história de como criei os Santa Ceciliers e tudo saiu do controle
Eu conheci melhor os bairros de Santa Cecília e Vila Buarque quando me mudei para o centro da cidade, em 2019. Na mesma época, o UOL moveu a área jornalística da Faria Lima para o prédio da Folha de S. Paulo, também no centro. Isso significava sair de uma Wall Street engravatada para uma São Paulo mais realista, assombrada pela Cracolândia e a fome.
Na época, eu conseguia ir a pé de casa até o trabalho, o que é uma vitória para quem nasceu na Cursino, um bairro distante. No novo lar, pude conhecer as melhores rotas para caminhar, apreciar e julgar a fachada dos prédios e, claro, ignorar a tragédia urbana com mais propriedade e menos incômodo.
Às sextas-feiras, depois do trabalho, eu me unia aos colegas para uma cerveja no largo da Santa Cecília, sempre em rodas de samba ou chorinho. Percebi que ali havia pessoas que, pouco tempo antes, viviam ou correspondiam ao arquétipo dos moradores de Pinheiros e Vila Madalena. As meninas tinham um corte de cabelo moderno (franja curta), os homens usavam camiseta florida, ouviam tropicália, samba, MPB. Muitos eram de fora da cidade ou de outros estados.
Na ocasião, minha namorada me convidou para um grupo do Facebook com aqueles moradores da Vila Buarque e Santa Cecília, que à época se chamavam de Cecibus. Assim, notei mais coisas em comum entre eles: a casa com chão de taco, a bicicleta magrinha e linda, a samambaia, o gato ou cachorros de pequeno porte - alguns, contra a compra de cães de raça -, o escambo de discos, sofás, estantes, livros e qualquer coisa.
Havia neles uma unidade, um comportamento particular. Todos tinham remorso de descartar móveis e roupas antigas, algo impensável de onde vim, a alguns bairros de distância. Manter coisas antigas em casa, como o chão de taco ou um sofá furado, são o diagnóstico do fracasso econômico e moral de família como a minha, que era, e ainda é, pobre no banco ou em espírito.
Existiam exceções, mas poucas pessoas dali eram de famílias pobres, como a minha. A pobreza e a distância do trabalho não engrossaram minha casca, nem botam alguém em um estágio elevado de moralidade, mas costumam aguçar a percepção de um repórter e, conscientemente, me beneficiei dessas ausências. Eu cochichei com minha amiga e repórter,Natália Eiras, que algo diferente estava acontecendo perto da redação e que valeria a minha investigação. Deixei a história em banho-maria enquanto me misturava à mata-virgem.
Pouco tempo depois, a revista Veja S. Paulo publicou uma reportagem sobre os Faria Limers, uma unidade identificada em outro bairro, a Faria Lima. Era uma realidade completamente oposta à qual eu havia observado. Enquanto os Faria Limers buscavam a performance, os ganhos, os objetivos, o outro convivia com um remorso de classe, vivendo onde consideravam haver um bucolismo interiorano e em apartamentos menores. Os Cecibus preferiam cerveja barata e as artes brasileiras e eram amargos com os Faria Limers.
Fiquei chateado quando a reportagem da Veja saiu. Senti não ter compreendido a fauna da Faria Lima, onde trabalhei por mais de três anos como repórter. Dessa vez, botei para mim que seria diferente. Durante semanas, aumentei minha frequência na Santa Cecília, Vila Buarque e acompanhei com mais proximidade os grupos de Facebook e os comércios por onde eu passava a caminho do trabalho.
Com ajuda da Natália, encontramos moradores dos dois bairros, cada um com algum grau de consciência sobre os arquétipos que representavam. A apuração me conectou a um antropólogo que havia concluído uma extensa pesquisa sobre a Vila Buarque e sua formação histórica.
Depois de ler o estudo, fui até a casa dos moradores com uma fotógrafa, Bruna Bento, e fiz as entrevistas. Por telefone ou por videoconferência, também entrevistei o antropólogo e outros personagens que encontrei no boca a boca: uma babá de plantas e um ator/engenheiro que havia doado um pênis gigante de pelúcia - o pirocão - no Facebook. Por último, entrevistei a “dona da noite” Lilian Gonçalves, proprietária de uma rede de bar histórica na Santa Cecília. Eu havia tentando entrevistar o dono de outros comércios, mas ela foi a mais solícita e, principalmente, é uma figuraça.
“Obrigado pela entrevista. É a segunda que a Lilian fez essa semana”, me disse o assessor da Lilian, assim que desliguei o telefone. Tomei um susto. “Como assim segunda entrevista?”, perguntei. Meu texto estava praticamente pronto. Lílian era uma fala adicional e acrescentada de última hora, pois havia sentido falta de um personagem mais histórico da Santa Cecília.
Revisei o texto, minha editora editou, a editora de arte ilustrou e foi publicado no dia seguinte. Eu havia chegado no nome “Santa Ceciliers” ou “Santa Cecilers” em vez de “Cecibus”, para ficar mais parecido com os Faria Limers. Era uma piada com a Vejinha, uma revista muito boa e influente que, historicamente, também parece se levar muito a sério. Depois, fui dormir sem muitas pretensões.
Na manhã seguinte, foi um estrondo. A reportagem foi uma das mais lidas do UOL, o que significa muita, muita gente. Meus amigos, os de sempre e aqueles que convenientemente ressucitaram, me parabenizaram por mensagem e áudios. Colegas de faculdade e do mercado de trabalho me escreveram e era só o começo daquela loucura.
No grupo de Facebook, muitos leitores se divertiram com a reportagem, mas um número maior se revoltou. Fui acusado de trabalhar para imobiliárias interessadas em subir ainda mais o aluguel da Santa Cecília, de agente da gentrificação, de ser um enviado da grande mídia e seus interesses escusos.
Eu já tinha certa experiência com a repercussão de matérias, mas ficou maluco demais. Antigos colegas de trabalho me defendiam na internet e estranhos se uniram para tentar me encontrar e excluir dos grupos online. Outros queriam saber onde eu morava.
Em algum momento, lembro de uma teoria da conspiração com requinte de detalhes sobre a influência conjunta dos grandes empresários e mídia a favor das incorporadoras, como se eu fosse o doutor Abobrinha. Alguns jornalistas acusaram a matéria de incompleta, mas outros a elogiaram.
Em casos como esse, os personagens são os primeiros a reclamar, mas nenhum desmentiu ou reclamou. Ao contrário, eles compartilharam. Genuinamente, só escrevi tudo que vi e ouvi, sem tirar nem pôr. A única exceção foi a babá de planta: entendi que ela cantava para as samambaias dos clientes. (Ela não cantava).
Surpreendentemente, fui muito acolhido pelo cara que vendeu a piroca gigante. “Eu sou ator. Sei como é. Uns vão falar mal, outros vão falar bem. É assim mesmo”, me disse. O conselho me ajuda até hoje.
Nos dias seguintes, a Veja S. Paulo lançou uma capa com o mesmo título e tema. Foram furados por uma coincidência maluca do destino. Na época, o chefe de lá recomendou "recusar imitações” e, em vez da minha, ler a deles. A matéria tinha vários dados, contextualização, personagens, bom texto. Elogiei o editor de lá, embora eu seja o pai biológico.
Os Santa Ceciliers foi publicado em janeiro. Nas semanas seguintes, o Buzzfeed Brasil e o próprio UOL lançaram quiz ou colunas com análises sobre a Santa Cecília. A maior surpresa veio em fevereiro, no Carnaval, quando tudo ficou doido.
Centenas de pessoas foram fantasiadas de Ceciliers. A fantasia consistia em uma samambaia na cabeça, uma roupa com textura de madeira do chão de taco e/ou uma camiseta do Belchior. Eu vi ambulantes e comércios que vendiam tiaras escritas "Santa Ceciliers" com glitter. Ninguém imaginava a minha autoria.
Dois meses depois, a pandemia começou. Imaginei que seria o fim daquela repercussão, mas poucos meses foi apresentada uma dissertação na USP sobre os Santa Ceciliers. A Casa Vogue, revista de decoração da revista Vogue, apresentou um projeto inspirado nos apartamentos Ceciliers (com 75m², o que é até espaçoso). Em resposta, a revista Casa e Jardim também publicou dicas de decoração Cecilier. Até a Folha de Londrina, no Paraná, tocou no assunto.
Mais de um ano depois, foi inaugurada uma “pousada Santa Ceciliers” no centro e uma incorporadora passou a vender apartamentos inspirados em Ceciliers, pequenos e com taco, como profetizaram meus detratores -- mas eu não tenho nada a ver com isso! Uma construtora no bairro vizinho de Higienópolis, conhecido por ser careta e tradicional, anunciou um novo empreendimento como “Alto Santa Cecília”. Um cara criou a própria cachaça chamada Santa Ceciliers e, três anos depois, outro talhou um boneco em miniatura de um Cecilier para vender. Uma reportagem de economia avaliava o impacto do reajuste dos aluguéis no comércio e apartamentos Ceciliers e o deputado federal Guilherme Boulos fez campanha para a prefeitura com uma samambaia e um vinil na mão na Santa Cecília e Vila Buarque. Li dicas sobre como cuidar da própria samambaia.
Hoje, a expressão é enraizada. Acho curioso escutá-la e ainda mais interessante quando volto nos bairros e vejo as contradições em movimento: dos desgarrados da Cracolândia que lá aparecem para comer lixo, dos bares cheios após o auge da pandemia, das pessoas que correm no Minhocão ali perto, dos apartamentos, que sempre foram caros, com seus tacos encerados e as samambaias eternamente murchas nas janelas. Sinto que percebi bem o que acontecia ao meu redor.
Leitura interessante
Gosto de tudo que a Ariela K. publica. Sinto que saio mais inteligente a cada texto. Recomendo assinar e compartilhar.
Frase desinteressante
“Vou para casa pintar minha casa de lilás”
(Um estranho que atravessava uma rua em São Paulo, janeiro de 2023)
Amei de novo, você é o autor dessa pérola. Minha meta de vida é ser uma tratada como uma samambaia Santa Cecilier, pessoas cantando pra eu dormir, a rainha do chão de taco.
Não quer conversar comigo sobre os Vila Buarquers, não? Fica tranquilo que sou só uma estudante tentando dar conta de um trabalho terrível. Se topar, me passa seu contato!