A história de quando comecei terapia mas continuei meio doido
Parabéns para mim: comecei a terapia. Sou um novo homem com problemas antigos. Minha nova vida é interpretada a partir de memórias empilhadas há décadas no armazém da minha mente, mas há também espaço nas sessões para lançamentos de remorsos adquiridos há duas semanas em uma liquidação imaterial de traumas modernos.
Essa minha jornada começou quando senti que precisava aparar as pontas dos meus incômodos. Mal não ia fazer. Agendei uma sessão, depois outra e outra. Passei a confiar em meu terapeuta como quem confia em uma manicure de longa data e, quando vi, já estava convertido.
Pode não parecer, mas estou contente. É uma boa notícia. Levei tempo, talvez tempo demais, até encontrar um bom analista. Para ser mais preciso, uns cinco anos. Cinco longos anos de um inverno de São Borja. Não à toa. Minhas primeiras tentativas com um psicanalista foram péssimas.
O primeiro atendia em um bairro rico de São Paulo, onde todos estão cheios de problemas de rico. O maluco tinha um divã, o que achei chique. Em uma mesa de centro, um pacote de lenços umedecidos. E eu, um bebê eterno, adoro a sensação de um bom lenço Pampers. A luz também era baixa, ideal para um vinho. Numa estante, havia um pelúcia do Freud. O clima perfeito para chorar.
Nós conversamos três vezes. Imagino que ele se cansou de tanta ladainha e, em algum momento, me disse que cobrava R$ 900 por mês. Era o valor da minha fiança. Só que havia um asterisco no contrato: ele só aceitava dinheiro em papel. Em papel. Pa-pel. Ouvi incrédulo.
“Eu não emito recibo, nem reponho sessão. Ah, e o dinheiro tem que ser em espécie!”, me disse. Mano, dinheiro em espécie? Para quem ele trabalha? Quem ele acha que eu sou? O Tony Soprano do Sacomã?
Saí de lá, peguei o metrô e nunca mais voltei. Meu pagamento foram minhas inquietações e espero que tenham servido para pagar a Enel enquanto ele, provavelmente, sonegava um ou outro imposto.
A segunda tentativa foi com uma terapeuta que ficava calada. Era o equivalente a passar por uma experiência imersiva com a Marina Abramovich, mas sem qualquer charme artístico. As sessões eram online e nunca sabia se a câmera havia travado ou se ela assistia à Bridgerton -- o que eu respeito, a série parece bem boa.
Cansei de parecer que falava com as paredes, porque isso posso fazer em casa de graça. Nosso relacionamento acabou onde começou, em um link do Google Meet. Ela partiu sabendo todos os problemas de relacionamento com meu pai, mas até aí tudo bem. Meu pai pode estar por aí com um terapeuta tratando os problemas no relacionamento com o filho. O cashback da saúde mental.
Na penúltima chance, desabafei todA a solidez da minha história convencional com uma nova terapeuta. Para tentar impressioná-la, acendi um Camel azul e despejei o material nuclear dos meus problemas. Não sei se colou. No fundo, era uma encenação e ela notou que eu faltei às minhas aulas na Wolf Maia do Frei Caneca.
No fim do meu desabafo, ela sugeriu me indicar antidepressivos. Pensando bem, talvez tenha colado o papo, mas achei a proposta ousada. Não tenho sinais de depressão, graças à minha herança genética, que me concedeu apenas varizes e tendência ao tabagismo. Tudo que sinto, talvez, seja só uma melancolia sazonal, proporcionada pelos astros no dia que nasci. Em vez de sertralina, por que não uma cartomante? Agradeci, desliguei a chamada e dei a ela o sabor contemporâneo e amargo do ghosting. Foi bom assim.
Não há uma unidade de pessoa hoje em dia que não tenha me recomendado sessões como essas. É ainda mais grave porque, quando não estou gritando pelado em cima de um poste, pareço até normal. Essa recomendação, porém, não é de graça. Toda unidade de pessoa que conheço está maluca. Doidona. Lelé. Como ficar são, afinal? Eu desconheço uma pessoa sã. Não se fabrica mais.
A última pessoa boa da cabeça que conheci foi Eduardo, em 2002, um colega da segunda série. Ele tinha orgulho de comer vegetais atípicos, como acelga e rabanete, esbanjava um sorriso cordial e vestia uma camiseta da Tigor T. Tigre. Não sei por onde ele anda. Imagino que deva cobrar R$ 900 de terapia em espécie de algum maluco pelado em cima do poste.
Mas a pergunta principal é: o que nos deixou malucos? Foi a pós-pandemia? Foram nossos empregos instáveis, nossos relacionamentos cada vez mais confusos e truculentos? O Instagram? O preço do aluguel? Porra, será que foram os 50 reais numa garrafinha de azeite? Ou só estamos mais abertos a abraçar os braços ásperos da loucura, diferentemente dos nossos pais birutas?
Jonathan Haidt, doutor em psicologia social pela Universidade da Pensilvânia, elabora em ‘A Geração Ansiosa’ que a infância hiperconectada gera uma vida performática que acelera em excesso o amadurecimento e cria um pequeno celeiro de malucos formado por crianças e adolescentes. Como no Palmeiras, o talento tem vindo da base.
O Haidt defende que as crianças estão desconectadas das relações pessoais, impacientes, afastadas das responsabilidades do “mundo real”, o que gera ansiedade. Ele também propõe restrições sérias a smartphones em escolas e até proibi-los em algumas faixas etárias. Essa última parte é honrável, mas deve ser mais fácil achar meio litro de azeite barato no Extra. Sir, esse trem já partiu sentido Rio Grande da Serra.
Já não sou criança há muito tempo, nem psicólogo, nem sou o meu amigo Eduardo. Além disso, todo adulto prevê o apocalipse da próxima geração, mas é impossível discordar que a internet apodreceu até mesmo nossos cérebros formados ainda na antiga era analógica.
Além disso, sobrevivemos a catástrofes de grande escala, como o isolamento social. Depois de adquirir nossa liberdade, ainda abrimos a janela para admirar um lindo sol vermelho de poluição. Toda a vida parece querer nos matar com o auxílio de belos adornos.
Neste ínterim, se encaixa lógica de que é preciso exercer a simpatia de uma vida ilustrada para atender às normas das redes sociais e ainda trabalhar e viver de forma inspirada, sorrindo, como um operário na propaganda do partido comunista chinês.
Eu, Marcos, não consigo seguir o compasso desse forró e ainda decorar os passos das músicas que deixaram de tocar no meu antigo toca-fita de recalques. Na falta de palavras mais rebuscadas, tudo isso é foda, man. Haidt, afasta de mim este smartphone.
É também sintomático que a terapia tenha se tornado, em parte, um escudo moral nas próprias redes sociais. Muita gente se gaba de ter a terapia em dia, mesmo que tenha atropelado propositalmente uma freira na rua.
Eu jamais vou julgar, pois não passei no concurso do TJ e, de fato, todos estamos precisando de ajuda diante de tanta coisa que tem acontecido como num rompante em nosso meio ambiente, nos nossos laços afetivos, nas cadeiras com rodinha de nossos escritórios.
Meu mais novo terapeuta me faz perceber a crueldade que exerço sobre mim mesmo, aquelas que aplico nas pessoas e aquelas que recebo e recebi ao longo da vida. Pois é comum a gente não perceber que detalhes da nossa vida atual e a do passado se infiltram como uma farpa incômoda e invisível. Pior ainda, como temos a habilidade de saborear nossas angústias e utilizá-las como refúgio, como um ganho secundário. Ou ainda não entender que a vida, realmente, tem proporcionado obstáculos atrás de obstáculos.
No excelente livro “Estranhos a nós mesmos”, a talentosa jornalista Rachel Aviv narra a história de um sujeito chamado Ray Osheroff, que nos anos 70 sofria com crises agudas de depressão até ser submetido à terapia e medicação e voltar a ter, pelo menos, algum senso de humor.
Mas o Ray não estava satisfeito. Em alguma virada negativa da vida, ele abre um processo histórico contra os psicólogos e psiquiatras que o estabilizaram após sentir que a depressão havia continuado.
Rachel é brilhante ao narrar: a conclusão é que Ray, com problemas familiares e na carreira, e com certa covardia para enfrentá-los, se envaideceu dos próprios problemas. Se agarrou a eles, pois era tudo que tinha.
Ele via o tratamento como utilitário, como um serviço, sem nunca distinguir as questões que eram de sua autoria, aquelas que não cabiam a ele resolver e as aflições comuns que deixam qualquer um mal. Até que Ray, cansado de terapia e remédio, se perde no vácuo.
“Como posso me definir? Quem é Ray Osheroff agora?”, ele escreve quando o pai morre, num tom de vítima, sem aceitar que isso é razoável para deixar alguém para baixo. “Existe um abismo doloroso entre o que é o que deveria ter sido”.
Ray decide, então, escrever um livro e se apegar ainda mais às suas confusões. “Duas narrativas diferentes sobre sua doença, a psicanalítica e a neurobiológica não haviam adiantado. Agora tinha esperança de que fosse salvo por uma nova narrativa, sua autobiografia”, acrescenta Rachel. O livro, incompleto, nunca saiu.
“Ele também sentia que qualquer narrativa que prometesse resolver completamente seus problemas seria falsa, uma fuga do desconhecido”, anota Rachel. Como um daltônico, ele havia deixado de distinguir a paleta de cores que o levaram à sua própria condição.
A terapia tem me ajudado contra isso: a perceber que nem tudo é minha culpa. Algumas coisas são. Outras, seria melhor eu deixar para lá. Em alguns casos, sou a freira atropelada. Em outros, sou o carro. Num terceiro exemplo, sou nada. E que não preciso ser unicamente os meus problemas. Buscar essa distinção é muito bonito e tem me ajudado a selecionar os feijões que deixei de molho.
Imagino que, no fim das contas, a busca maior por terapia hoje venha dessa vontade de desvendar e atenuar o caráter anômalo das nossas vidas, da nossa estranha composição química cerebral, do nosso sol vermelho, antes que sejamos desestruturados pelo universo.
É interessante perceber que nem sempre o processo terapêutico tem uma “alta”, nem prometa cura, já que os acontecimentos são contínuos e têm traços que, sem ajuda, podem ser insondáveis na correria.
Afinal, mesmo se for para inserir na bio do Insta a minha condição terapeutizada para continuar praticando meus delitos emocionais, se eu tô com uma leve dor de dente, é recomendável ir ao dentista, não é? Mal não vai fazer. “Tudo é dor/E toda dor vem do desejo/De não sentirmos dor”, como dizia Rimbaud (mentira, é Renato Russo).
Para finalizar esse texto, que já cansei de escrever para as paredes, gostaria de pedir licença aos leitores. Minha sessão começa em breve. Me comprometo a voltar em 50 minutos. Quer dizer, talvez sejam 50 minutos. Eu nunca sei. Meu terapeuta costuma me dar o corte laca-
Cheguei aqui há uns dias para conhecer a história obsessiva do teu pai com Sandy & Júnior. O texto de hoje é minha segunda leitura e gostei demais - da história, das reflexões e, principalmente, do jeito de contar.
Você descreve uma sessão de psicanálise como ninguém! Hahahaha