A história de quando fiquei 6 meses sem celular
Em 2017, meu celular foi roubado pela segunda vez em menos de um ano e eu decidi viver sem ele. Estava de saco cheio de ter que bancar mais um trocinho caro desses. Assim, fiquei seis meses sem celular. Seis fucking meses. Um tempo em que deixei de reclamar do sinal de internet merda, não pedia mais a senha do wi-fi para o garçom, nem pedir um Uber ou táxi no aplicativo.
Na época, tinha 23 anos. Isso significa que os celulares já estavam mais ou menos aí quando eu nasci. Só que, claro, pude brincar sem que minha mãe me filmasse e me postasse no Instagram. Também cresci sem aquela vontade incontrolável de checar o feed - na época da minha abstinência, ainda era o feed do Facebook - e sem figurinha de bom dia no grupo. Não tinha que comprar artefatos como “capinha” e “película” para salvar um objeto de quedas e, para ser honesto, na minha infância seria melhor uma película para o próprio chão devido ao tamanho e densidade dos aparelhos disponíveis no mercado.
Ao abrir mão do smartphone, um aparelhinho muito mais funcional e mandatório, regredi patamares básicos da vida em sociedade. Eu deixei de saber, por exemplo, que horas eram. Me guiava mais ou menos pelo sol e por alguma espécie de instinto ancestral das primeiras sociedades nômades. Não tinha sequer como enviar um SMS para avisar de que eu atrasaria. Nem isso.
Nas primeiras semanas, eu vivia ansioso. Uma aflição equivalente a sair de casa e achar que a porta ficou destrancada ou o fogão ligado. Assim que notava meu bolso mais leve, me vinha um frio na barriga. Tinha sido roubado de novo? Perdi o celular? Será que tinha caído no banco do ônibus? Não, era só uma etapa da minha vida que havia começado sem que eu notasse.
Na minha cabeça, o chefe convocaria uma reunião urgente e meus amigos me convidariam para uma festa maneira sem que eu ficasse sabendo que a vida continuava. Sem brincadeira, se o Brasil entrasse em guerra eu só iria saber o que estava acontecendo quando chegasse uma convocação no meu endereço lá no Sacomã.
Eu era desses que julgava a demora de alguém para responder mensagens (eu não sou mais assim, ok? Como diz a Sandy, eu cresci agora). Deixei de ser assim — e alguém deve ter ficado seis meses esperando uma resposta minha, como na era das Grandes Navegações até as Índias Orientais.
Deixei de ter internet banking e tive que cumprir tarefas terríveis, como tentar usar a versão desktop do Santander de 2017 (que parecia de 1997) e, para meu profundo pavor, comparecer a uma agência bancária. Lembro que a atendente me olhou desconfiada quando disse que não tinha celular. “Serve o de casa?”, perguntei. Pela reação dela, deve ter achado que eu era um foragido da Justiça.
Para ser honesto, ninguém me ligou no telefone fixo durante esses seis meses. Nem as pessoas que eu gosto e posso ser rancoroso. Mas, tudo bem, acho que ninguém sabia mas utilizar um conjunto numérico para falar com alguém em tempo real, sem um áudio de três minutos. Só recebi uma ligação nesse tempo todo: a do banco.
A sociedade possui um profundo estranhamento em relação às pessoas sem celular. No primeiro mês, em uma mesa de bar, ouvi de um amigo. “cara, até quem está na cadeia tem celular”. E não tive como negar. Muitos levavam para o pessoal, como se deliberadamente eu quisesse manter distância de todos. Minha irmã, uma das maiores devotas do WhatsApp que conheço, ficou estarrecida. Todo dia passava em casa com um folheto sugestivo do Magazine Luiza. “Como alguém fica sem celular? Logo você, um jornalista!”. Nisso, ela tinha razão.
Eu trabalhava como repórter da revista Trip naquela ocasião e precisei entrevistar o Emicida para uma reportagem excêntrica sobre rap e espiritualidade que eu havia pensado. A produtora da editora chamou o táxi, eu entrei e fui. Quando cheguei no escritório dele, só tinha o bloquinho, a caneta e nenhum gravador.
Enquanto ele falava, eu anotava o mais rápido possível, como um tipo de sábio da Biblioteca de Alexandria. O Emicida foi bastante gentil, falava devagar, disse que também se inspirava mais quando escrevia as letras à mão. “Você, meu mano, é um cara analógico”, disse em algum momento. Pelo menos, fiquei com uma pinta de espirituoso, meio Tolstói. Para voltar, eu cogitei pegar um ônibus mas, sem graça, pedi o telefone do escritório emprestado, liguei para a companhia de táxi vir me pegar e esperei o carro aparecer. Sem tempo de espera, sem estrelinha ou reviews. Vocês lembram de quando fazíamos isso? Era uma época terrível para viver.
Para receber algum recado, meus familiares e amigos enviavam mensagens a pessoas que sabia que estavam próximas a mim. Exemplo: meus pais mandavam WhatsApp para a minha ex-namorada quando eu não estava em casa. Quando sabiam que eu estava no trabalho, enviavam inbox no Facebook, embora eu nem sempre fosse atento o suficiente para respondê-los. Minha irmã, em especial, enviava um catálogo em .pdf com ofertas de celular para toda a minha rede de apoio tentar me convencer a voltar para o incrível mundo dos celulares. Chegou um ponto tão ridículo que, quando comecei a trabalhar no UOL, passei o número da minha mãe para o chefe. Tipo, como eu estivesse no ensino primário ou algo assim.
Depois de quatro meses, minha percepção de tempo mudou radicalmente. O tempo físico, mesmo. Eu reparei como é difícil encontrar relógios de parede nos lugares hoje em dia e, até mesmo na rua, há poucos relógios públicos. Eu marcava um compromisso pelos meios que eu conseguisse - às vezes, fazia um convite falado para uma pessoa, sem outros lembretes adicionais - e conseguia sentir o tempo passando enquanto aguardava. Eu esperava “mó tempo” em vez de “esperei 30 minutos”. A materialidade do tempo alterada. Uma coisa até que poética.
Em 2017, São Paulo tinha cerca de 40 mil orelhões. Era muito mais fácil encontrá-los do que hoje, quando são 4 mil. Ainda assim, era dispendioso andar por quarteirões em busca de um orelhão em um território com 1.521,11 km². Ninguém mais vendia cartões telefônicos e eu ligava a cobrar. Uma moça, mais perdida do que eu, uma vez me parou no Conjunto Nacional para perguntar como que usava o orelhão. “Você sabe como eu disco interurbano nisso?”, e eu disse que não sabia.
Como ainda morava com a minha mãe, tinha à disposição o telefone fixo que ela ainda usava. Por isso, programei um alarme no número 134. Era assim que eu acordava. Pegar táxi em caso de atraso era impossível. Em avenidas é mais fácil, mas experimenta tomar um táxi em alguma ruazinha ali do Sacomã. Era mais fácil passar um navio na minha rua do que um taxista, sério.
Seis meses depois, em vez de odiar o celular, passei a achá-los incríveis. Não tive jornada de autoconhecimento, não aprendi a conviver com o tédio, não comecei ouvir um “bom disco de vinil” que dá pra “sentir a música de verdade”. Ok, me fez ter uma perspectiva do tempo que gastamos nas redes sociais, mas eu já havia sido envenenado pela grande máquina do sistema.
Deixei de ser mão de vaca, comprei um celular novo parcelado e, desde então, devo ter tido uma dezena de smartphones que sequer lembro os modelos. Em 2017, para ser justo, me parecia ser um pouco mais simples ficar desconectado do que hoje, o maravilhoso ano de 2023, quando a internet parece um acidente de trânsito horrível do qual não conseguimos desviar o olhar.
Meu caro amigo, suas histórias sempre me alegram o dia!
Estou sem redes sociais o que já é o suficiente para espantar as pessoas. Amigos vieram me perguntar "mas você está bem?", questionamentos retóricos, pois já concluíram que não estou. A preocupação é maior até do que quando peguei Covid.
Outra parte concluiu que terminei o relacionamento e fica indignada quando digo que continuo casada e está tudo certo. Acho que já estou em abstinência, passei a usar o status do WhatsApp com regularidade. Só dá eu e minha avó.
Confesso que às vezes me assusta quando estou de bicicleta e observo todos os pedestres caminhando com a cara enfiada no celular. Parecemos um bando de zumbizinhos com o pescoço torto e os olhos grudados na telinha. Enquanto pessoa que precisa de uam rehab por uso excessivo de celular, li tudo sentindo vontade de atirar o aparelho pela janela.