A história de quando fiquei triste e achei que ficaria na fossa para sempre, mas com motivo
Existe uma fotografia do primeiro dia em que fui triste.
Foi no meu aniversário de cinco anos, quando meus pais perceberam que eu tinha idade para entender uma celebração em minha homenagem, mas não era velho o bastante para fazer exigências.
Por isso, escolheram o tema - Palmeiras -, me vestiram como quiseram, aproveitando o número redondo para demarcar que eu deixava de ser um bebê dócil para começar a ter a percepção aguçada e intrometida das crianças.
Foi naquela festa, porém, que senti que a origem das lágrimas vinham do mundo exterior e nem meus pais conseguiriam controlá-las. Minha nova vida estava ali, na minha frente, sinalizada com um trilha de beijinhos, brigadeiros e melancolia.
Eu soprei as velas do meu bolo, mas a natureza das velas é a insistência. Soprei de novo, muitas resistiram, como se recusassem a passagem para o meu próprio tempo. Minha irmã, então, teve a brilhante idéia de convidar outras crianças a soprar o que havia restado das chamas. Fiquei consternado.
“Era meu aniversário”, pensei. “Eu sou o momento”, pensei mais. “Por que estão chamando um filho da puta corintiano de 4 anos para assoprar minha vela do Palmeiras?”, continuei. “Olha aí, tá escrito ‘feliz aniversário, Marcos’. Não tá escrito ‘Feliz aniversário, todas as crianças dessa bosta dessa festa’”, acrescentei.
Tirei meu boné do Mickey e chorei. Um flash eternizou a primeira de muitas das minhas tragédias particulares ainda hoje objetos das minhas análises. Afinal, tem dias que ainda me sinto triste, triste assim.
Dias em que choveu no meu samba, dias em que esqueci de dessalgar a carne seca da minha feijoada, dias em que subo uma escada rolante parada, dias em que alguém pisou no calcanhar do meu tênis e me deixou descalço. Não tenho CID mapeada, nem depressão, nem ansiedade. O que talvez tenha de tristeza seja a influência dos astros, o Palmeiras, ou a perene sensação da passagem acelerada do tempo.
Nas fotografias seguintes, os adultos riem do meu 11 de setembro mirim. Talvez soubessem que aquela era a primeira das decepções encadeadas ano após ano dali em diante. Talvez, entediam o que eu ainda não compreendia: quanto mais anos são somados, mais tempo é subtraído. E eu ainda tinha muito tempo para me preocupar com corintianos de 4 anos, que dali em diante iriam assumir as mais diversas formas para soprar as minhas velas do futuro.
Posso dizer, com firmeza, a razão da minha tristeza. Senti que minha autonomia fora quebrada, despedaçada; que o Palmeiras nunca cometeria tal atrocidade comigo (mentira); que meu sopro era fraco demais para aplacar a barreira de velinhas no meu pernicioso caminho rumo à vida adulta. Quanto drama a consciência nos traz, meu deus, era para ser só um aniversário de criança.
Há mais fotos daquele dia. Uma delas, em especial, é com meu irmão, Adriano. Como num meet and greet familiar, Adriano me segura nos braços com o background do Palmeiras às nossas costas. Ele sorri. Os olhos dele eram azuis, às vezes verdes, a depender da luz. Os cílios enormes cobriam as cores frias, o que me lembrava um enigmático caleidoscópio.
Éramos opostos. Ele era extrovertido, vinte anos mais velho. Eu, introvertido. Era bom de cálculo, atividades manuais. Eu só sabia ler, incapaz de montar um bonequinho do Kinder Ovo. Aos vinte anos, recebi um telefonema da minha cunhada. Adriano tinha morrido uma semana antes de completar 40 anos.
Fui o primeiro a ser informado e encarregado da burocracia do velório, do cemitério, de informar minha mãe, minha irmã, nossos tios. Era a primeira das minhas grandes responsabilidades como adulto, a de se habituar ao abandono. A morte dele também tirava minha autonomia para determinar como desejava viver meus próximos anos, mas nossa oposição foi respeitada. Há dez anos, ele continua morto. Eu, vivo.
Até os 30, minha idade atual, Adriano exercia certa normalidade. Era pouco habituado ao trabalho formal, mas teve filhos, um casamento, um apartamento próprio. Tinha uma angústia incompreendida ainda a ser desvendada, mas gostava de festas de criança. Uma desculpa para beber uma. Nelas, obrigava todo mundo a ouvir “Velocidade da Luz”, do Revelação, enquanto virava a carne do churrasco e equilibrava o Marlboro vermelho entre os dentes.
Há anos ele demonstrava sintomas de decadência. Sumia por meses, depois aparecia enfiado em alguma mutreta, contravenções, prisões. Nossa família se sensibilizava e o ajudava, mas também praticamos o mesmo abandono ao qual ele nos submeteu ao nos deixar. Não nos sentimos culpados por isso: não entediamos os dilemas crípticos que o levaram a definhar diante de uma implacável dependência química. Talvez, nem ele entendesse. O dilema foi enterrado na Vila Alpina.
Sem direito à escolha, nós o vestimos do jeito que a gente quis, o rodeamos por enfeites de coroas de flores que nós escolhemos. Só evitamos o tema do Palmeiras porque o malandro ainda era são-paulino. Anos depois, um coveiro me telefonou para a retirada do ossos, me entregou uma sacola com os restos e tomei um Uber até o crematório próximo com os vestígios de um corpo entre as pernas onde antes havia os dois grandes olhos enigmáticos da minha infância. Minha mãe se encarregou de ficar com as cinzas, depositadas por ela no pé de uma árvore.
Irei retomar essa história outras vezes, com mais detalhes, como quem observa um quadro por muitos ângulos durante muito tempo até encontrar minúcias até então imperceptíveis. O motivo dessa contemplação é menos admiração e mais medo dos significados emoldurados. Após os meus trinta anos, temi que poderia ir à deriva como ele foi após alguns tantos aniversários. Em maio, porém, completo 31 e continuaremos opostos. Ele nunca chorou a morte de um irmão. Nunca foi submetido às transformações íntimas ao ver no espelho os mesmos traços físicos de um irmão morto. Por isso, seremos eternamente distinguíveis. Além disso, prefiro Camel azul e nunca acerto a joça do ponto da carne no churrasco.
O luto é isso aí. Tem dias de chuva no meu samba, mas em que as escadas rolantes funcionam. Meses atrás, coloquei para tocar “Velocidade da Luz” nos meus fones de ouvido. Fiquei apreensivo, mas depois senti ternura. A letra, reparei, é uma despedida de um suicida, mas são daquelas coincidências projetadas nos atos de alguém que morre. Há anos evitava ouvi-la, mas a canção soava linda e caridosa uma década depois. Chorei um pouquinho. Naquele dia, ninguém me fotografou, mas o momento daria um belo retrato do primeiro dia em que minha tristeza virou saudade.
Que texto forte, Marcos. Na falta de palavras para este momento, envio a você sinceras saudações palestrinas. Elas costumam ser suficientes para quem pertence - e mando com alegria.
rapaz, que porrada.