A história de quando fiz 30 anos e fiquei meio perdido na vida
30 anos de idade. Não sou mais um jovem adulto. Sou um adulto adulto. Vermifugado, que declara imposto de renda, com uma leve intolerância à lactose, uma ou outra prótese dentária, e resistência cada vez menor contra as ressacas. Se bebi demais na sexta, agora só no próximo ano bissexto. Eu venci.
Se eu fosse parte dos primeiros grupos humanos, seria um ancião. Teria flechado mamutes, vencido a influenza, uma prole de uma dúzia e manteria minha dieta paleolítica. Mas eu estou em 2024. Me visto com camisas coloridas e só arrumo computadores com um tutorial do YouTube feito por um pré-adolescente.
Quando vejo fotos antigas da família, percebo que elas revelam uma dissonância entre a aparência que tenho hoje e aquela que poderia ter tido nas décadas passadas. As fotografias mostram homens e mulheres com 20 e poucos anos - quase sempre, escorados na traseira de um Fusca - com a aparência de um senhor dando entrada no INSS. Eu, não. Me olho no espelho e ainda me sinto um universitário, a barba irregular, algumas feições de dez anos atrás, um pouco bobo alegre.
A idade, afinal, é uma performance do tempo em que se vive. Hoje, nós, jovens-adultos, buscamos uma juventude que, com sorte e uma shoulder bag, nos ofereça a jovialidade eterna. É um reflexo da nossa atual situação.
Com 30, muitas vezes adiamos os filhos, as viagens, os financiamentos. Adiamos até a maturidade para nos preparar para praticar a vida adulta em algum momento impreciso no futuro. Enquanto isso, tentamos aparentar jovens até que alguém nos ofereça um assento preferencial ou aulas de hidroginástica.
Há pouco tempo, viralizou na internet a história de Osvaldo. Na década de 80, ele foi tentar achar uma namorada no programa do Silvio Santos. Era assim a vida pré-Bumble. Mas o que chama atenção é que Osvaldo tem 24 anos e aparenta ter uns 45 e, de longe, uns dois divórcios, três filhos e um pastor alemão.
O repórter da Deutsche Welle Brasil, Maurício Cancilieri, entrevistou especialistas em semiótica para explicar o motivo da aparência envelhecida de pessoas como Osvaldo nas fotografias antigas de família. “Será que o problema não está na nossa maneira de enxergar o passado?”, o colega pergunta. É a reportagem mais alemã que já vi, mas a resposta é bem simples.
Até pouco tempo, ao completar 18 anos, a sociedade exigia uma aparência mais velha, considerada mais madura e apta a assumir responsabilidades. Por isso, algum tio seu aos 20 anos aparentava o Adoniran Barbosa. Era normal. Você já era, no fim das contas, um adulto.
Naqueles tempos, os Titãs até cantavam: “não confio em ninguém com mais de 30, não confio em ninguém com 32 dentes”.
O recado é dado: com essa idade longeva, entrava-se na era da seriedade. You’re not cool anymore. Você não sentaria mais na mesa dos prodígios. És um adulto, porra, se comporte feito um. Não à toa, os Titãs lançaram músicas sobre epitáfio e cuidar de jardim depois dos 30.
Mas, neste ano da glória, as exigências diminuíram. Nosso semblante de maturidade aos 20 se perdeu junto, mas não se foi sozinho. É um reflexo da nossa capacidade em, de fato, conseguir assumir responsabilidades adultas de verdade.
Tudo isso é fruto dos anos 2010 e 2020, anos revolucionários que ainda estamos tentando entender direito. Mudou tudo.
Veja bem: nossos pais ainda nos cobram netos e uma CLT, mas estamos encarcerados em regimes de trabalho cada vez mais informais em uma sociedade cada vez mais cara. No Sacomã e em outras grandes metrópoles, trabalhamos e trabalhamos sem dinheiro suficiente para bancar sequer um minha casa, minha vida sem o temor de que a burocracia e grana envolvidas engulam nossas fantasias aspiracionais para quando, de fato, nos sentirmos adultos o suficiente para realizá-las.
A nova liberdade nos nossos relacionamentos amorosos também criou um cálculo complexo e uma espécie de tédio. É frequente ouvir um amigo dizer que nunca vai casar na igreja e que faria só um churrasco para família, que pensa tentar uma bolsa de mestrado, adotar um gato para fazer companhia ao outro gato para, só então, quem sabe, tentar um relacionamento mais ou menos monogâmico e com filhos quando a hora chegar (idade da pessoa: 36 anos).
Com esse desprendimento, alguém que alcança os 30 já teve a chance de viver em regime PJ como um imperador romano. Já esteve em orgias, usou as melhores drogas, aderiu e largou o cristianismo, comeu as uvas mais verdes, usou as melhores túnicas e, vez ou outra, demonstrou uma inclinação à bissexualidade após meio jarro de vinho. Nos tornamos Cleópatras, com acesso aos melhores cremes e geleias e somos alimentados com serventia pelos nossos melhores e silenciosos mordomos (AirFryer).
São mudanças nos aspectos da vida prática e sentimental que empurraram a percepção de que somos adultos tradicionais para mais adiante. Por isso, parecemos cada vez menos como o Osvaldo e mais com, sei lá, o Chorão de regata do Chicago Bulls e boné para trás aos 32. Também nutrimos um portfólio diversificado de comportamentos eróticos e afetivos exercidos no passado só por um pai de família adultero.
Nos libertamos de muitas expectativas, mas também criamos o sentimento de que os sabores da vida em boa parte já foram desfrutados. Ao mesmo tempo, vem a sensação de que ainda existe um horizonte que nos foi negado e nos pressiona, apesar de não termos clareza se queremos alcançá-lo de verdade.
Somos como cachorros atrás da moto e não temos ideia do que faríamos se pudéssemos morder a perna do motoqueiro. Como diria uma frase adaptada do Schopenhauer, “a vida é a constante oscilação entre a ânsia de ter e o tédio de possuir”. É complexo, mas não vou citar mais um alemão nesse texto fora das normas ABNT.
Para mim, o grande filme de terror dessa condição é A pior pessoa do mundo. A protagonista Julie começa um relacionamento com um cara mais velho. Ainda quer ser psicóloga e fotógrafa, mas continua trabalhando em uma livraria. Ela engravida, mas não sabe se seria uma boa mãe. Ela tenta frear o próprio desejo, mas flerta com um carinha. Se separa do outro por tédio, se apaixona de novo e começa um novo relacionamento. Tudo que impressionava no novo cara, porém, a deixa indecisa, entediada, postergada. Ela termina novamente. E volta o looping.
É apavorante. Eu revejo Clímax do Gaspar Noé sob efeito de cogumelos vencidos mas não assisto a esse filme nórdico novamente. Onde estão os Vikings? Sei meus limites e preciso dormir à noite.
O incômodo é causado porque Julie cumpriu com o esperado: teve uma família, se preocupou com o meio ambiente, saiu da casa dos pais, nutriu sonhos. Ao mesmo tempo, se inclinou a uma independência que demorou a chegar para as mulheres. Por que da angústia contínua? Por que a insatisfação para enfrentar as situações que, em tese, lhe foram proporcionadas pelo acaso e pelas próprias decisões?
Vou arriscar meu palpite. As cartilhas eram muito definidas e controladas até pouco tempo. Você casava, gerava filhos, pagava o IPVA, se vestia igual ao Osvaldo e tá aí. Nossos enredos particulares estavam mais ou menos definidos e vigiados. Hoje, há uma obliteração de comandos e normas abastecidas por incontáveis sugestões das redes sociais. A nossa agenda de compromissos e ideias foram ampliadas e os efeitos na nossa vida íntima são inestimáveis.
As redes estimulam a sensação de que algo está fora do normal. De que deveríamos pensar melhor nas coisas, ver novas perspectivas, fazer uma baliza eventual nos nossos rumos, recarregar as energias na Bahia e avaliar se o que queremos é, em essência, bom para nós. Isso tudo com um card em tom pastel do Instagram. Pode ser positivo: há pontos cegos na nossa intimidade. Podemos normalizar a submissão e as violências sem alguém para dar um toque mas, perdidos como estamos, também nos ajoelhamos a manuais maniqueistas que tentam definir o que é, afinal, a vida.
Uma vez, entrevistei um cara que me disse a seguinte frase: “até o Estatuto da Criança e do Adolescente, as crianças e adolescentes não existiam”. A frase nunca saiu da minha cabeça.
Os pais criavam os filhos como calopsitas, fechando e abrindo a porta da gaiola, ensinavam algum vocabulário, enchiam o pote com gergelim e um tio ensinava um palavrão. A performance nessa faixa etária, os direitos e dilemas, só entrou em vigor quando alguém percebeu que era uma classe sem um papel muito bem definido e oprimido na encenação doméstica e social.
Não há um estatuto atualizado que determine claramente o que significa ter 30 anos - seria bom. Parece que parte do conflito surge da comparação entre objetivos tradicionais e os objetivos de algo novo, cujos detalhes ainda não conhecemos completamente. Este embate envolve a necessidade de atualizar nossos objetivos para alcançar algo que já deveríamos estar buscando.
Em Girls, por exemplo, a transformação da protagonista Hannah começa, justamente, quando ela engravida e decide ter um filho. As tretas das temporadas anteriores, como o sonho de ser uma escritora reconhecida, continuam a atormentá-la. Para explicar isso, vou citar algo que nada vê, mas que é bom anotar porque vai cair na Fuvest.
Nos anos 70, o crítico Antonio Candido chegou à ideia da “Dialética da Malandragem”. Em resumo, ele fez um gráfico sobre Memórias de um sargento de milícias e organizou as personagens em círculos. Alguns deles estavam em uma linha chamada de “ordem”. Outros, da “desordem”. Era a força motriz da narrativa: a ordem tentava manejar a desordem e, com isso, se criava uma tensão. Assim, a história ganhava potência.
A história de Hannah ou de Julie incomodam por estarem deslocadas entre a ordem e a desordem. Individualmente, elas colidem em si mesmas e pertencem a polos contraditórios ao mesmo tempo. Se encontram e se perdem, se reprimem e se libertam. A dialética da coisa continua lá, mas algo escapa quando tentamos decifrá-la e é mais difícil delinear as ações que poderiam ser tomadas - e, importante, vamos nos irritar com elas, tentar entendê-las e, ainda mais brilhante, se identificar.
Hoje, com 30, sinto que minhas experiências que passei se fundiram com aquelas que almejo ter. É uma situação maluca. Sei que me comportaria de maneiras diferentes às mesmas situações aos 15, 25 e 30, mas que as ações de cada uma dessas etapas dialogam entre si sem nunca se extinguirem.
Fico feliz que meus 29 passaram. Para ser honesto, queria que passasse logo, mas os semáforos demoram mais quando você está apressado. Sei do acréscimo de responsabilidades aos 30, mas percebo que, lá no fundo, ainda não sei porra nenhuma. De longe, a única certeza que tenho é que só vou beber no próximo ano bissexto (mentira).
Marcos, passei pelos 30 e, para mim, foram os novos 20. Com mais obrigações e desafios. Agora tento entender os 40, que tento emplacar como os novos novos 20, mas tenho medo da repetição ser uma grande sátira.
Agradeço pela oportunidade de ler mais um grande texto.
Fiquei alguns minutos, após terminar de ler o seu texto, ainda digerindo e percebendo como ele me atravessou, de uma forma realmente interessante. Obrigada por isso.