A história de quando notei que home office é uma péssima ideia
O que nós sabemos de verdade sobre o home office? Vamos ser honestos. O que se tem até agora são opiniões. Uns gostam, outros não gostam, tipo coentro ou Taylor Swift. Minha honesta arguição pretende ir além. Confie em mim, eu tenho OAB (não tenho). Eu gostaria de entender os efeitos na psiquê humana de trabalhar no mesmo lugar onde se mora.
Quais são as sequelas em levantar da cadeira, fechar o notebook, dar dois passos até o sofá para no dia seguinte repetir o ritual de Sísifo no mesmo lugar onde você dorme, se masturba, assiste à novela das empreguetes à tarde (eu sei que você assiste), lava louça, bota roupa para lavar e opera esse grande Trello da vida doméstica? Alguém sabe?
Hoje as vagas de emprego parecem uma decisão judicial. “Híbrido, presencial três dias na semana”, um oferecimento do regime semiaberto. Você pode levar o computador para casa, instalar a VPN. Você pode tirar uma soneca no horário do almoço. Uma vida nômade, cigana. Perfeita. Mas não tanto assim.
O WhatsApp vai te notificar enquanto você passa um café. O e-mail vai chegar. A reunião no Teams vai te lembrar que os tentáculos corporativos vão te entrelaçar. Vão te perseguir, expropriar a intimidade do lar que você sustenta justamente porque a empresa te deu um emprego para sustentá-lo.
Antes, quem tinha um escritório em casa eram grandes empresários, escritores, dirigentes soviéticos. Agora você precisa comprar uma cadeira ergonômica e um mousepad almofadado para lutar contra a LER e a hérnia de disco enquanto emite nota fiscal. Os demais benefícios são as janelas das nossas casas, veja só. Você pode trabalhar em um local com janelas acessíveis, com a vista para um lindo e impiedoso dia de sol.
Todo esse modo de trabalho foi acelerado, claro, como uma consequência da pandemia. Você não esqueceu. Todo dia alguém perguntava sobre como seria o “novo normal” e, bem, a normalidade chegou. Tá aí. As coisas se assentaram e a gente vive assim agora. Como diria seu terapeuta, você está se sentindo normal?
Se você buscar no New York Times por the future of offices no Google, vai encontrar uma porrada de previsões de que os escritórios poderiam morrer. Depois, que iriam morrer de fato. Em outro dia, alguém repensando como se comportar com os chefes e os colegas de trabalho à distância. Depois, dicas de móveis e rituais para fechar as infiltrações do trabalho na rotina doméstica, como levar o notebook para trabalhar em uma cafeteria, num coworking, em uma viagem para uma ilha paradisíaca (Ilha Porchat, São Vicente), como se ele fosse um cachorro. Esqueça o escritório. Agora você é livre para trabalhar até morrer onde as pessoas passam as férias.
Manhattan, por exemplo, tem tido uma taxa de inadimplência alta e prédios cada vez mais esvaziados com os trabalhadores levando o trabalho para casa. Os impactos vão do fechamento de restaurantes pertinho dos escritórios a gerenciadores de escritórios transformando as salas vazias em coworkings, em hoteis, Airbnb’s, moradias, bangalôs (essa última parte é mentira). Se eles estão tristes, muita gente está feliz.
Uma galera gosta de trampar em casa. A preferência desses milhares de alguns é causada pelo fato de escritórios serem ambientes horríveis. Não importa se o RH encheu uma mesa com Fini de banana ou montou uma mesa de ping-pong. Você vai olhar para o teto, ver as lâmpadas brancas como a de uma farmácia e pensar em adquirir um novo vício (cigarro, álcool, drogas, compras parceladas, ingestão de metais ferrosos, cerâmica) quando tudo aquilo acabar.
Em Matrix, por exemplo, um grande aliado de Neo para fugir dos agentes Smith são os cubículos. Ele se agacha de um lado para o outro enquanto tenta vencer o labirinto corporativo. É uma bela metáfora. O desespero é tão grande que, em algum momento, ele decide que o melhor é tentar fugir pela janela e seja o que Deus quiser - e quem nunca.
Nas últimas três décadas, a galera do RH percebeu que os cubículos são inóspitos, provêm privacidade mas também afastam os colegas. Em 1997, uma companhia de óleo e gás no Canadá contratou um grupo de cientistas da Universidade de Calgary para monitorar a transição dos cubículos para os escritórios abertos. Parecia bom: eles se sentiram menos estressados, mais produtivos, mais conectados à equipe.
Mas a gente tá falando de trabalho, uma palavra que em sua raiz significa sacrifício, martírio. Curiosamente, a aventura de Hércules na Mitologia Grega falava em 12 trabalhos - doze tarefas impossíveis que poderiam matá-lo, como enfrentar um labirinto com um minotauro enfurecido. A ideia não era bater ponto, mas hoje vemos similaridade nas duas coisas, sei lá se por acaso.
Assim, em 2011, uma nova pesquisa americana com 38 mil trabalhadores detectou que o modelo de escritório aberto favorecia, sim, o pertencimento a um grupo, mas a fofoca passou a comer solta. Muitos eram interrompidos para ouvir a conversa fiada dos outros e ficavam à mercê de ver quem ia até a sala do chefe, quem passava horas demais no café, quem traía a esposa com quem, quem ia demais ao banheiro, quem estava de ressaca, o horário de entrada e de saída de fulano. E barulho: o colega que assobia, a impressora emperrada, o grampeador ou aquele ódio de ouvir a simples risada de uma pessoa (todos nós temos um dia assim).
Aquele papinho de “só na marmita hoje, ein?” ou “esse filtro demora pra encher a garrafa, né?”, a linguagem verbal das coisas ditas desnecessariamente porque somos brasileiros e nossos vínculos desconfiam do silêncio. É como aquela música do Maurício Pereira: tudo tinha ruído. Estou ouvindo essa agora no home office sem fones de ouvido enquanto preparo um whisky sour (mentira, eu acabei de pedir uma salada no iFood).
O grande objetivo das pesquisas, lá no fundo, é identificar como e quanto tempo o trabalhador volta a pegar no tranco depois de ser interrompido por qualquer alteração física no ambiente corporativo. E nenhuma empresa quer que você produza menos. Nunca. Nenhuma corporação vai te dizer para pegar mais leve. Desista. Você está preso com o minotauro.
Depois que toda pessoa sã se vacinou contra a Covid-19, ficou aquele clima esquisito no ar. “Seremos obrigados a voltar para aquele lugar com ar-condicionado no talo?”, como se fôssemos retornar para as grandes minas de carvão.
O Elon Musk mandou todo mundo da Tesla voltar para o presencial em 2022. E muitos chefes fizeram o mesmo, pois ele é o Elon Musk. A inconformidade se propagou no mundo todo. Teve sindicato na França que processou a empresa para ficar em casa ou, pelo menos, em regime híbrido - sob o risco de carros serem incinerados. Teve gente que, quando chamada novamente para o front, já tinha pegado o primeiro avião para a Oceania. Alguns voltaram para serem demitidos - que delícia.
Não é à toa. Os escritórios são, no fundo, uma operação de manutenção hierárquica. São um troço que o Foucault iria nadar de braçada e gola alta para extrair uma puta análise. Como um Ozymandias de jaqueta puffer, um chefe precisa observar os domínios do seu reinado, ouvir o ressoar das catracas, iluminar uma sala com o brilho fosforescente de uma apresentação com template padrão do Canvas.
O home office não é, nem de longe, uma forma de resistência. Ao contrário, é uma aprimoração do novo normal, onde a comunicação simplesmente ignorou as fronteiras da intimidade e você é acionado o tempo todo com demandas repetitivas, como um pasteleiro de feira de sábado.
Um colega certa vez diz que, não satisfeito com WhatsApp, a empresa havia aderido a um software que cronometrava o tempo de cada tarefa, gerava um ranking dos funcionários e pontuava aqueles ratinhos que corriam mais rápido na rodinha. Que gostoso.
O meu grande incômodo, no fundo, é também trabalhista.
Quais leis definem a separação entre casa e trabalho? A empresa tem que te dar uma cadeira confortável? Tem que entender que, em casa, você vai precisar levar os filhos na escola, passar por uma consulta médica? Se eu ficar a mais, é hora extra? Meu chefe pode me obrigar a voltar da Oceania caso eu já tenha alugado um imóvel confortável na Nova Zelândia? Eu serei obrigado a atender à convocatória de ir no escritório quando me chamarem, como se eu fosse parte do exército sul-coreano? Essa reunião não poderia ser um Zoom? Se eu burnoutar no trabalho - percebam que já é um verbo - eu vou ficar onde? Em casa, mesmo? Revendo Sex and The City? Onde estão nossos refúgios particulares?
Vou deixar minha opinião: não gosto muito do home office. Nem muito de escritório. Eu gosto das coisas boas da vida, uma pêra doce, navegar em uma escuna por Salvador, ver crianças correndo no parque, tomar um café moído na hora, ouvir um Skank enquanto tomo uma cerveja, sentir o fim de tarde arroxeado chegando ao meu redor, uma porção de torresmo com limão. Nós não somos muito diferentes dos gatos, nascemos para dormir, comer e acordar, mas inventamos esse jeito de viver e agora tudo, tudo tem ruído.
PS
Estou lendo isso no meu home office enquanto espero uma reunião de última hora começar. Reunião essa que foi convocada pelo Teams pois a empresa não trabalha com WhastApp. Me sinto um trabalhador-fudido-privilegiado por ter lido esse texto belíssimo em horário comercial.
Ahá, o problema é ter que trabalhar!