A história de quando um Marcos Candido aleatório roubou meu nome
Uma história compulsiva de quando busquei outros Marcos Candido pelo Brasil
Morreu na última semana o senhor Lineu Candido de Azevedo na cidade de Piracicaba aos 83 anos. Deixa dois filhos. Entre eles, o doutor Marcos Candido. Em Goiás, Marcos Candido, diretor de novos negócios de uma incorporadora, participou de um evento com o governador Ronaldo Caiado para falar de, sei lá, prédios. Toda semana, o diácono Marcos Candido publica um vídeo com reflexões sobre fé no YouTube. Nesta semana, Salmos, capítulo 26, versículo 27.
Como não tenho mais o que fazer, configurei o Google Alerts com meu próprio nome. A princípio, por motivos profissionais. Pode não parecer, mas sou um jornalista sério (cof, cof) e preciso saber a extensão das minhas reportagens na internet. Mas também sou um cronista menos sério e desenvolvo hábitos talvez desinteressantes para a massa (adoro quando citam o nome do filme durante o filme). Assim, passei a acompanhar à distância a vida dos meus homônimos.
A ideia era saber em qual ato está o teatro da vida dos Marcos Candido. Saber se os outros Marcos Candido estão encenando uma comédia. Um drama. Quais crimes eles cometeram ou se são protagonistas de uma missa de sétimo dia. Mas antes de irmos mais a fundo, vamos começar uma jornada etimológica. Preparem o Redbull, pois haverá chamada oral.
Marcos é um nome bíblico, mas se você perguntar ao meu pai, a história será diferente. Ele não foi para a escola direito, sabe escrever pouco e não é de igreja. Também morre de preguiça de escrever seu nome longo. Por isso, ele me deserdou do seu legado de cansaço e me deu um nome curtinho, um nome adorado pelo Serasa e nem tanto pela lista de aprovados da Fuvest.
Marcos, na verdade, era o nome de um patrão dele, talvez o primeiro a pagá-lo quando chegou da Bahia para trabalhar como ajudante de pedreiro em São Paulo. Mas ele justificou a decisão nesses termos: “Um nome curto para ele aprender a escrever logo”, como se prevenisse algum tipo de dislexia ou só um filho meio burro. Se foi isso, deu certo. Aos 7, comecei a escrever Marcos, mas minha letra era tão horrível que quem tentasse ler confundiria com cirílico.
Minha mãe se preocupou com isso como se eu tivesse aderido ao crack no jardim da infância e me comprou um caderno de caligrafia gigantesco. Linha após linha, eu redigia: Marcos Candido, Marcos Candido, Marcos Candido, como se eu fosse invocar a Loira do Banheiro.
Com o tempo, minha letra ficou melhor do que a de um prontuário médico, mas tirei o acento de Cândido ao tirar uma cópia do RG no Poupatempo da Luz, com uns 10 anos. Também tinha preguiça de colocar o chapéuzinho, reinvidicando parte do legado paterno preguiçoso. E os adultos deixaram.
Foi naquele dia que traí a classe dos Cândido circunflexos e hoje sou facilmente localizado por um oficial de Justiça. Já os Marcos são muitos. Segundo o IBGE, há neste momento 1 milhão de Marcos brasileiros por aí mas, nós, Cândido sem acento, somos as últimas peças do mostruário.
Incrivelmente, o IBGE diz que no Brasil existem 34 MMarcos e 41 Marcoz. Sim, com dois MMs e outros com Z. Na faculdade, por algum mistério, alguns amigos me apelidaram de Márcio, um nome próprio. Houve quem seguiu uma linha similar na minha vida e me chamou de Maco, sem o R. O IBGE não mapeou o Maco, mas ele está no meu mapa particular de lindas e carinhosas vivências.
(Minha mãe tem uma história ainda melhor. Meu avô, que também não sabia nem ler e escrever, chegou ao cartório e, confuso, acatou a sugestão de flexionar o gênero. Logo, minha mãe é a única Cândida na família, o que em São Paulo é o mesmo nome dado para água sanitária). (Nunca sei se o ponto final vai dentro ou fora do parênteses.)
Um dia, prestes a entrar na universidade, vi um livro em uma banca de jornal: era Cândido, de Voltaire. Porra, chique pra caralho. Também passei a ler Antônio Cândido. Outro dia vi um filme, um monólogo arrastado de duas horas de "A Paixão Segundo G. H", estrelado por Maria Fernanda Cândido. Fiz uma reportagem sobre João Cândido, um marinheiro negro expulso e malquisto pela Marinha até hoje por - veja bem - ser contra chibatadas. Fora o Candido Portinari, um artista aí que tá começando e que também tirou o bendito acento.
Achei bonita a caridade dos nomes, que não escolhem entre os analfabetos, artistas, intelectuais e revolucionários. Eles nos dão a liberdade que as circunstâncias nos oferecem para dar sentido à nossa existência a partir desses títulos. Ou, como veremos a seguir, para nos dar a chance de ser nada demais neste plano.
Joguei meu nome no Google e descobri que havia uma rua chamada Marcos Candido no Mandaqui. “Uau, o máximo que nós conseguimos foi o Mandaqui”, pensei. Pô, não faturamos nem uma travessa da Paulista.
Em São Paulo, todas as ruas com nome de gente têm nomes de mortos. Como ainda me sinto vivo e irrelevante para nomear uma delas, tentei descobrir quem foi esse maluco que me tirou a chance de ter um CEP individual.
Pensei: seria uma alegria receber um umidificador da Shoppe para Marcos Candido, na rua Marcos Candido, com endereço de cobrança na rua Marcos Candido - e o carteiro assumir a responsabilidade de invocar a Loira do Banheiro no meu lugar. Mas, não. O Marcos Candido tirou isso de mim. Ele me roubou.
E foi aí que as coisas começaram a ficar complicadas para o Marcos Candido, o nascido e criado no Sacomã (eu).
A prefeitura de São Paulo mantém um site chamado Dicionário de Ruas. Por lá, por exemplo, você descobre que a rua Peixoto Gomide, conhecida como “Cheiroto Gomide”, onde se compra qualquer substância inalável, assassinou a filha e se matou. Tudo porque ela iria casar com um poeta, que também era filho de Peixoto com uma mulher escravizada. Negócio leve.
Você também descobre ruas como a Borboletas Psicodélicas, Dança das Borboletas, Sol da Meia Noite, a travessa Sonho de um Carnaval, a rua Azul da Cor do Mar e, minha preferida, a gentil rua Superbacana. Todas elas foram parte de um projeto da prefeitura que chamou filósofos e poetas para nomear rapidamente endereços de novos bairros entre os anos 80 e 90. E os adultos deixaram. A rua Marcos Cândido, porém, não tinha uma explicação.
Até 1980, a rua Marcos Cândido se chamava rua 6. Os vereadores decidiram chamá-la de Marcos Candido em 1981. A Câmara Municipal faz uma ata para justificar isso, mas o nosso camarada nem uma ata de fácil acesso mereceu. Pobre coitado. Mas também: é uma ruela minúscula, com paralelepípedos, umas casas com cara de nada e equipadas com cercas elétricas e banners do QuintoAndar.
Tomei, então, a missão arqueológica de enviar um e-mail a uma repartição pública para resolver o enigma. Deve ter sido ápice do ano da diretoria da Coordenação de Denominação de Logradouros e Próprios Municipais do Arquivo Histórico Municipal da Cidade de São Paulo (CDLPMAHMCSP). Isso porque eles me responderam. Me explicaram que as ruas também podem ter nomes de corpos celestes, vegetais, veículos marítimos (?), divindades e até acidentes geográficos. Nome de gente só se tiver relevância histórica, o que na prática deve consistir em ser amigado de um vereador.
Mas as notícias eram ruins. “Verificado nosso acervo local de biografias e justificativas, não encontramos informações sobre o nome pesquisado [Marcos Cândido]. A rua entrará em nossa próxima leva de revisão”, mas o tal do Marcos Cândido nunca foi revisto. Isso tem anos e nada. Para vocês terem ideia, até a travessa “Sem História, Sem Destino”, em São Mateus, tem uma história e talvez um destino.
Não aceitei. Fui pessoalmente ao Arquivo Municipal, no Bom Retiro, tirar satisfações em nome da nossa classe. Lá, encontrei uma bibliotecária passiva-agressiva que me recomendou agendar uma visita ao arquivo da Câmara de Vereadores, entrar com um processo administrativo e obrigar um funcionário a vasculhar a papelada até o nariz cair de rinite crônica.
O destino, na matéria de uma bibliotecária, me deu duas opções: arranjar mais o que fazer do que buscar a biografia dos mortos ou ouvir o coro dos Marcos Cândido ou Candido. Tomei a segunda opção.
Em Salvador, por exemplo, um Marcos Cândido criou um projeto chamado Axé. Durante décadas, ele identificou e tirou das ruas a população de rua. “Eles são números, mas não há dados qualitativos que produzam conhecimento sobre quem são essas pessoas”, disse ele em uma entrevista em 2017. “São sujeitos de conhecimento, de direitos e de desejos”. Em 2023, Marcos Cândido teve um mal súbito e morreu aos 55 acreditando na elegância do desejo anônimos.
Em 2012, no Rio de Janeiro, nas considerações finais de uma tese de doutorado, um Marcos Cândido cita Mikhail Bakhtin. “A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal, não no sistema linguístico abstrato das normas da língua, nem no psiquismo individual dos falantes”. Essa passagem, em especial, até onde entendi, mexeu bastante com a minha egotrip.
Conseguimos ser alguma coisa porque somos nomeados, mas uma placa, uma carta, um endereço de e-mail são só letras caso não tenham o acréscimo concreto daquilo que que representamos ao outro. Essa é a minha mensagem para 2025: que você acrescente ao seu nome ainda mais sentido a quem te chama por ele e por seus apelidos. Pode soar piegas esse conselho, mas os melhores que já recebi pareciam algum tipo de poema cafona do Carpinejar. Alivie para mim.
Digo isso porque 2024 foi um ano difícil. Me senti perdido, ansioso, insatisfeito, ingrato com a vida. As coisas mudaram quando concentrei minha atenção a ouvir da boca das pessoas que amo que, a elas, meu nome tem sentido prático e que preciso valorizar quem o canta e o escreve, mesmo com acento circunflexo. Além disso, também desejo que vocês encontrem certa ternura em, às vezes, se sentirem confortáveis em estarem perdidos, como numa rua sem nome. De preferência, no Sacomã e não lá nos quintos do Mandaqui. Encerrei a jornada da rua Marcos Candido. Relendo, percebo que usei todo esse texto para dizer que minha letra continua feia e quase a mesma nos bilhetinhos que deixei, nas contracapas dos livros e nos cadernos em que escrevi. A mão que a assina há três décadas, porém, deve continuar tentando encontrar um formato legível, até que a persistência me dê algum tipo de biografia. Um brinde e um abraço a todos! Nos vemos no ano que vem. Até lá, Salmos capítulo 26, versículo 27.
adorei!
eu tenho várias homônimas de nomes completo, com todos os sobrenomes iguais e o mesmo jeito de escrever o 'luisa'. a minha sorte é que nenhuma delas é concurseira, imagina procurar o nome no diário oficial e se iludir com a nomeação de OUTRA luisa!!!1
Socorrooooo!!! kkkkkkkkkk..Primeiro a história de Sandy e Júnior, agora os Marcos Candidos! Se eu fosse psiquiatra te daria um laudo de transtorno obsessivo compulsivo hereditário. Mas como não sei nem se esse diagnóstico existe, fico aqui com minhas cólicas abdominais de tanto rir das suas descobertas (e não descobertas) na pesquisa de campo por outros Marcos Candidos e pensando seriamente em ir pro Google buscar por outras Patricia Barbosa.