A história de uma luta de boxe impossível de vencer e infinita
O juiz ergueu o braço de Fernando Menoncello e o declarou campeão da noite. Não houve papel picado, champagne. Os dois lutadores de boxe não foram abraçados por familiares e não se agarraram à bandeira do país, como em grandes espetáculos ou nos filmes de Hollywood. Não era uma luta do século. Ao redor do ringue, somente alguns espectadores, sentados em cadeiras de plástico, aplaudiam. Minutos antes, Menoncello golpeou o peso-médio Paulo Ricardo com uma sequência forte e rápida; um dos golpes desnorteou, sangrou o nariz do adversário e a luta foi encerrada. Era uma reviravolta. Nos primeiros rounds, Menoncello, vestido em um calção azul, parecia deslocado, ansioso e com dificuldade para se posicionar. Ele trabalhava durante o dia, lutava à noite e estava fora de forma. Era uma luta na raça. Assim que o adversário no calção vermelho demonstrou cansaço, Menoncello aproveitou a defesa baixa e o sobrepujou. “Foi uma luta horrível”, pensou consigo mesmo. Apesar da má avaliação, a vitória era um alívio. A família, os amigos, o técnico Nilson Garrido e o próprio boxeador tiraram um peso das costas. Era um começo. Fernando Menoncello, o Bolacha, estava de volta.
Oito anos após aquela noite, Bolacha é agora um professor de boxe. Sozinho, criou o projeto social “Das ruas para os ringues” e dá aulas gratuitas de boxe para crianças, adolescentes, adultos e prepara atletas. São duas unidades em São Paulo que, apesar de aceitar doações e não receber salário, são mantidas com dinheiro de aulas particulares. Os espaços são cedidos pela prefeitura, mas o ringue em Pirituba, na zona norte, foi erguido com uma vaquinha entre amigos e custou R$ 20 mil reais.
Há campeões entre os atletas de Bolacha. Vitória Cristina, 17, da pequena favela do Cruzeirinho, na zona norte da cidade, foi medalhista de ouro no campeonato brasileiro na categoria juvenil feminina com 51 kg em novembro de 2021 e, no mesmo mês, classificada para o time brasileiro de boxe nos Jogos Pan-Americanos Júnior em Cali, na Colômbia. Vitória foi treinada com o método usado para criar atletas em qualquer modalidade: treinos repetitivos de candidatos ainda jovens. Jabs, reação, esquiva e posicionamento dos pés são feitos à beira da exaustão para despertar uma memória muscular e ostensiva. Com o tempo, o atleta parece comportar a razão em uma camada porosa do cérebro, prestes a causar o esquecimento da própria consciência. Em troca, a maturidade muscular oferece ao corpo um reflexo coordenado e audacioso. Os sentimentos capazes de desencadear a insuficiência de todo o sistema - a ira, o medo, a insegurança, a dor, o amor - parecem sintetizados em uma só fórmula, uma união do que há de melhor entre a ordem e a desordem no cérebro, aprimorando-o. O indivíduo, então, produz a assertividade tão sonhada, a agressividade e a calma que o ajudam a lhe tornar, além de imbatível, cativante. É um trabalho a longo prazo, mas muito frágil. Um soco, por exemplo, pode infiltrar-se nas galerias internas de um lutador e condená-las. Sem fortificar as próprias defesas mentais com auxílio de um bom mestre, um nocaute produz uma intoxicação irremediável, contagiosa.
A relação entre mestre e aprendiz também é dolorosa. “Lá no ringue ninguém vai ter dó dele, entendeu?”, diz Bolacha. Há uma rotina incontornável, há a rispidez no trato que, ao mesmo tempo, são incentivos. As ambições precisam ser condicionadas a dimensões reais, pois a confiança da vitória ou a debacle de uma derrota podem criar distorções inescapáveis. Antes da luta, a mente do boxeador é preenchida com o rosto dos familiares ao redor, pelas imagens dos anos de treino, pelo medo de errar, pela vontade de fazer um nome para conquistar patrocínios e, quem sabe, se tornar uma lenda em um esporte de lendários. Rocky Marciano, Muhammad Ali, Éder Jofre, Popó, Mike Tyson, Paulo Sacomã, Robson Conceição, Sertão. Os rostos sangrentos que sorriem e choram de alegria pelos olhos inchados nos noticiários. Os cinturões dourados reluzentes. As fotografias nos ginásios. São sonhos inspiradores, sedutores e perniciosos.
“Eu boto na cabeça deles que a favela tem que vencer sempre, não importa o quanto você lute, se esforce, ninguém nunca vai dar nada de graça. É como em uma luta de boxe, né, mano? Não tem nada mais literal que o boxe. Ou você cai pra dentro, ou você cai pra dentro. Não tem pra onde correr”.
Bolacha nasceu em Pirituba, na zona norte de São Paulo. O pai era chaveiro; a mãe, secretária. Após o divórcio, se dividiram entre o Rio de Janeiro e a capital paulista. Assim como no boxe, Bolacha criou um nome na rua. O apelido não tem a ver com deformações causadas nas lutas, apesar de lesões e uma cirurgia no crânio terem causado dificuldade para enxergar. Na infância, o rosto arredondado de Bolacha lembrava o do personagem Kevin Arnold, do seriado Anos Incríveis, e do recém-lançado biscoito recheado Trakinas (em São Paulo, chamado de bolacha). As ruas onde cresceu não eram favelas, mas havia ali a típica violência urbana: os garotos conquistavam uma boa reputação na base da porrada. “Era um território estranho: era tipo um clima de gangue de Nova York, de uma vila contra a outra”, diz. Entre eles, Bolacha era destemido e agitado. Por volta dos 12 anos, já bebia e brigava em portas de escolas. Na adolescência, cheirava esmalte e fumava maconha. “Tudo que um doido quer é status. Me deram status, daí deu merda”, diz. Um ano depois, conheceu a cocaína. “Era uma sequência de derrotas. Quando você tem uma doença como essa, você não guarda nada além de dívidas. Você só perde. Não guarda dinheiro, não guarda casa, não guarda esperança”, diz. No Rio de Janeiro, foi aprendido aos 14 anos e internado pela família em uma clínica de reabilitação aos 15 anos.
Seis meses depois, Bolacha voltou para casa, julgando-se desintoxicado e desocupado. Naquela época, acordava com o avô para assistir às lutas do bad boy Mike Tyson, transmitidas na televisão na madrugada da Globo. Ex-pugilista na década de 40, o avô de Bolacha julgava Tyson um boxeador violento. Em 1997, Tyson mordeu e arrancou um pedaço da orelha de Evander Holyfield mas, apesar da agressividade daqueles tempos, as lutas uniram neto e avô e deu a Bolacha uma ideia: praticar boxe. Aos 17, não tinha a idade mais apropriada para ser atleta, nem o avô era o mais empolgado com a ideia.
O esporte, porém, consumiria um tempo livre e poderia despistá-lo das drogas.Na primeira luta no Clube Nacional, em São Paulo, venceu por nocaute técnico no segundo round. A segunda, ganhou no primeiro round com pouco mais de 1 minuto. A torcida estava em peso. Naquele mesmo dia, Bolacha voltou para as drogas.
Com o tempo, perdeu peso, os amigos do bairro e a família, desesperançosos, se afastaram. O boxeador mal tinha 20 anos quando se mudou para Mairiporã, no interior de São Paulo, para fugir dos olhares que o julgavam -- e também para traficar e usar crack. O que até então começava a construir no ringue, caía como num castelo de cartas: o dinheiro sumia mais uma vez, as dívidas se acumulavam, a habilidade no boxe se perdia. Por último, foi despejado. “Fiquei com medo de ir parar num hospital psiquiátrico, tipo o filme do Rodrigo Santoro, o Bicho de Sete Cabeças”, diz.
Após 15 dias na rua, Bolacha foi acolhido no Arsenal da Esperança, uma instituição de caridade mantida por lideranças católicas e voluntários no bairro da Mooca, em São Paulo, onde vivem mais de 1 mil homens. O local tem números de uma cidade: em 25 anos, abrigou 65 mil homens, serviu 25 milhões de refeições, fez 370 mil atendimentos médicos e 2 milhões de assistência social. Entre eles, o boxeador. “Tudo o que nós propúnhamos, o Fernando [Bolacha] topava. Ele participou de uma roda de terapia e, depois, lembro de chamá-lo para pintar os muros de uma creche. Ainda estava deslocado, mas tinha muita garra”, diz para Ecoa o líder da Arsenal, o padre Simone Bernardi. A instituição o encaminhou para cursos técnicos e Bolacha arrumou um emprego como segurança da CPTM, a companhia de trens. “Os cursos e a reconexão com o boxe foram degraus que o ajudaram a se levantar”, diz o padre.
Em 2013, Bolacha errou o caminho da escola e encontrou a lendária academia de boxe Projeto Garrido, instalada abaixo de um viaduto no bairro do Ipiranga. Nas primeiras lutas arranjadas por Nilson Garrido, apanhou a ponto da torcida chamá-lo de Rocky Balboa, personagem de Sylvester Stallone conhecido por se manter de pé mesmo em desvantagem. “Ele saiu do ringue mais bravo do que nunca”, afirmou Garrido em uma entrevista. Bolacha não perdeu mais sob o viaduto e atraiu patrocinadores. Com o olho ainda roxo, impressionou os colegas de albergue. Foi naquela época que sangrou o nariz do adversário em um ginásio.
Bolacha se voluntariou para dar aulas de ginástica para os colegas de abrigo enquanto se preparava para sair da instituição. Assim, começou a dar aulas particulares de boxe e lutava até se lesionar, em 2016, e criava o projeto social de boxe “Do Ringue Para as Ruas” para descobrir atletas e resgatar pessoas da violência, da injustiça, da falta de perspectiva e da dependência química. As inspirações são Garrido e projetos sociais liderados por antifascistas na Itália, como o Palestra Popolare -- e deu aulas para o rapper Emicida na unidade da Freguesia do Ó.
Em breve, mais nomes do boxe devem sair do “Das ruas para o ringue”. Hoje, divide o trabalho com mais professores, como o peso-pena Henrique Luiz Cabreira, ex-aluno do treinador, atleta profissional e instrutor de crianças e adolescentes. “Gosto muito do estilo de defesa e esquiva do Muhammad Ali”, diz o boxeador, que pretende voltar com tudo em 2022.
A dependência química, uma doença, foi mais ou menos domada com comprimidos, com o esporte, com as festas abandonadas. É uma condição impossível de ser extinta. Está sempre lá. “É um fio tênue, tá ligado? É complexo falar de drogas. É uma roleta-russa”, diz.
“Eu fico bolado quando dizem que eu sou espelho. Eu sei que é uma história inspiradora e as pessoas me chamam de espelho com o bom coração, tá ligado? Mas quem eu sou? Um cara que viveu um monte de problema, fodeu muita coisa na vida. Eu trabalho certo, tenho resultado, mas hoje não faço resgate só pra esses moleques aqui. Eu faço um resgate de mim”.
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Uma reportagem sobre gêmeos que perderam irmãos gêmeos. Prepara o lenço. Por Sibele Oliveira para o UOL Tab.
Frase desinteressante
“ A gente precisa fazer um chá de reveleção de classe social"
(Anônimo em bar de São Paulo, outubro de 2022)
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