A história dos sapatos mais perfeitos da cidade.
Os dedos de seu Mário da Costa previam o tempo e doíam quando ia esfriar. Eram como seres autônomos unidos contra as décadas de trabalho imposto pelas mãos. No frio, eram ainda mais ruidosos. Com razão.
Seu Mário era sapateiro e dono da Calçados Busso, na Vila Buarque, em São Paulo. Na prática, a sapataria se parece com a funilaria e é exigente para o corpo. Um Busso é feito com martelos, alicates, pá, pregos, estiletes. Há também alfaiataria: tecidos, couros, tesouras, desenhos.
Um Busso dura anos, muito anos a mais do que seus proprietários, e vários acompanharam os donos para debaixo da terra. Mas se as ferramentas e os sapatos não envelheciam, seu Mário, os dedos, as mãos e os clientes se desfaziam um pouco a cada aniversário.
Há três anos, quando Mário morreu com pouco mais de 80 anos, a Busso permaneceu onde estava: a mesma fachada inaugurada nos anos 30, com a mesma porta, o mesmo sinaleiro e a mesma inscrição em letras douradas na entrada: Calçados Busso.
É mais ou menos assim desde 1915, quando foi inaugurada. A Busso existe antes do primeiro samba ser gravado em disco, antes dos modernistas de 22 se apresentarem no Theatro Municipal, antes da Segunda Guerra Mundial, das grandes fábricas paulistas, dos grandes monumentos como o Masp, o Copan, o elevado João Goulart, antes das chaminés dos Matarazzo.
A sapataria criada por imigrantes italianos está no mesmo endereço desde os anos anos 30 e ali resiste às novas invenções. Encarou a Nike, enfrentou a Adidas, a Converse, a Puma até ser assumida por Mário.
A ausência do sapateiro é, portanto, só mais um acontecimento em uma série de mudanças ininterruptas no universo; mas enquanto o mundo muda, a técnica da sapataria permanece imune pelas décadas.
A fôrma do pé dos clientes é guardada com centenas de outros pés de madeiras, organizados em estantes empoeiradas. Empoleirados, lembram uma caixa de brinquedos abandonada por um adulto na casa dos pais ou um depósito com manequins incompletos. “Esses aí já morreram”, dizia o seu Mário. Era brincadeira, mas não muito.
Os grã-finos paulistas do passado encomendavam sapatos da Busso inspirados em fotografias de parisienses ou nova-iorquinos. Eram só referências: os Busso são incomparáveis. E havia os excêntricos. Um deles jura ter ido ao Pantanal para caçar e transformar um jacaré em um Busso. Os clientes eram assim: artistas, aventureiros, empresários, advogados, ditadores, presidentes.
Entre eles, Jô Soares, o ex-ministro da Justiça Nelson Jobim, Fernando Henrique Cardoso, o ditador João Figueiredo, o governador Geraldo Alckmin, Jânio Quadros e tantos outros poderosos da política, das cortes, das artes. O estilista Clodovil Hernandes desenhou um Busso, um bicolor que era orgulho de Mário.
Os novos fregueses pediam um Busso “parecido” com modelos vistos no Instagram... Mas os Busso são únicos, levam até dois meses para ficarem prontos e custam mais de 2 mil reais. “Meus sapatos são perfeitos”, dizia Mário. Não era uma frase comum. As reclamações eram mais comuns: “Tênis, tênis, tênis. Só querem tênis”.
Todos os dias, ele se sentava em uma máquina de costura, com os cabelos brancos escovados para trás, sapatos de couro e camiseta social. Era alto, se me lembro bem. Parecia-se com um arquétipo de italiano de Hollywood, um tipo vaidoso e masculino, embora fosse um português com as mesmas características.
Ao seu lado sentava-se Walter, um sapateiro ainda mais resmungão. Ele reclama do trabalho, da falta de clientes, do clima, das horas, dos tênis. É um jogo de aparência. Na verdade, é gentil com quem ousa desafiá-lo a uma conversa e apegado às suas ferramentas: o alicate, os pregos, a espátula e, depois que Mário morreu, a máquina de costura. O cômodo é silencioso. Os metais dele são os únicos sons.
Seu Mário também tem um filho, chamado Wanderley, que nunca foi sapateiro. O pai soava grosso quando reclamava sobre não ter herdeiros para fazer o que fazia. “É uma arte”, dizia.
Há cerca de três meses, vi a fachada da Calçados Busso enquanto caminhava. Conheci seu Mário e Walter cerca de seis anos antes e quis revê-los por curiosidade. Abri a porta e encontrei um rapaz surpreso com a visita. Era Wanderley. “O seu Mario morreu há uns três anos”, gaguejou, “mas você pode falar com o Walter lá nos fundos”.
Não sei se lembrou de mim ou foi educado, mas Walter disse ter me reconhecido. Desde a morte do colega, Wanderley abriu um site e uma página no Instagram para a loja. A Busso poderia fechar as portas em breve, repetiu. Muito em breve. Uma encomenda salva as contas em um mês, mas e no mês seguinte? Os culpados, para ele, eram os tênis. Sempre os tênis.
Sobre seu Mário, me explicou: “teve um AVC há uns anos e não andava bem de saúde. Daí, morreu. A vida é assim”. Não me entristeci com a notícia, mas voltei para casa com uma sensação estranha. Percebi que havia um novo prédio ali próximo e que as coisas passavam mais rápido do que eu podia notar.
Nesse tempo, jornalistas continuaram a retratar a Busso como um animal em extinção. Mário, Walter e Wanderley não são ingênuos. Sabiam que eram indefesos contra os tênis, mas lembrá-los do fim, repetido na cara deles, me soa cruel e incorreto.
Os objetos não respeitam muito a lógica do fim e não estou sozinho ao pensar nisso: o escritor turco Orhan Pamuk concorda. Pamuk é um crítico dos museus. Para ele, as verdadeiras “profundezas da nossa humanidade” são nossos objetos, não só a grande história, com suas grandes nações, grandes estados e grandes heróis.
Nós não somos uma massa de seres vivos, argumenta, e temos singularidades preciosas - nossos vestígios cotidianos contam uma história mais precisa de quem somos. “Os lares onde estão objetos guardados com carinho e sem pretensões já possuem sua própria história”, escreve. Se discordarem, reclamem com ele.
Fui para casa e pensei no que defende Pamuk, no que faz a Busso, e sobre como meu guarda-roupa assombraria as pessoas na minha ausência. Para ficar nos calçados, vi meu sapato de couro sintético, que não para de descolar, e notei que ele resistiria indiferente ao meu abandono igual a todos os sapatos que já tive.
Lembrei dos objetos dos mortos que já atormentam: uma gravata com um nó dado pelo meu irmão morto há sete anos; uma escultura de madeira feita por um vizinho vítima de um infarto há 15 anos, do qual lembro de ver o corpo estirado na sala enquanto recebia massagem cardíaca; as meias cor-de-rosa grossas, feitas “para andar em casa” nos dias de frio, herdadas do meu avô (sim, recebi meias de herança).
Em mais de quarenta anos como sapateiro na Busso, seu Mário dedicou-se a criar objetos como esses: todos os dias, sentou em sua máquina de costura, separou o couro importado da Europa, ouviu o sinaleiro da porta, colocou-se ao lado de Walter, respirou a poeira dos moldes de madeira, empoeirados e organizados como um museu, para criar o que julgava os melhores sapatos da cidade.
A Calçados Busso continua aberta há mais de 100 anos. Walter ainda faz sapatos. O filho, Wanderley, os vende pela internet. Um número incontável continua guardado em casas, túmulos ou andam pelas ruas da cidade que não para de mudar desde a morte de seu Mario.
Frase desinteressante
“Eu não quero ler análise de filme. Eu só quero saber se é bom ou não"
(Anônima em restaurante, janeiro de 2022)
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