A história quase perdida dos últimos cavaleiros de Fernando de Noronha
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Dois homens andam a cavalo em Fernando de Noronha. Eles são rodeados pelo oceano e por um rochedo com milhares de anos formado pela lava de um vulcão há muito submerso. Como quase todos os dias, o calor é intenso e o céu tem pouquíssimas nuvens. Os cavaleiros vão a caminho do porto. Naquele dia, escolheram passear. Praticar. O trote dos cavalos levanta uma poeira fina, que se dissipa na mesma velocidade que aparece.
A maré está agitada. A lua cheia aparecerá em algumas horas e, até lá, as ondas irão levar os incontáveis caranguejos de um lado para o outro sem destino. Um dos cavalos quase pisa sobre um mabuya, mas o pequeno lagarto que, dentre todas as ilhas do planeta vive só em Noronha, escapa rapidamente por entre as rochas. Os cavaleiros parecem condenados na solitária de algum paraíso, mas não estão sozinhos.
Uma pequena rodovia federal cruza o caminho deles. Carros passam em alta velocidade. Um ônibus com ar-condicionado e janelas escuras transporta dezenas de turistas até uma praia próxima ao porto. Há um posto de Ipiranga, com cigarros, balas Halls, isqueiros, doces e funcionários que carregam e empilham fardos de bebidas até formar colunas altas. O movimento na área cresce quando o pôr-do-sol se aproxima.
Os dois cavaleiros ocupam a rodovia, mas um dos cavalos estranha o asfalto. Ele trava, relincha e se debate até ser acalmado. O grupo, então, continua: cavalgam pela Capela de São Pedro, por ruínas de um forte militar de 1737, por canhões abandonados da Segunda Guerra Mundial e chegam ao Mirante do Francês. O nome é luxuoso, mas o tal mirante é só um pequeno banco colocado à frente do oceano e das pequenas e desocupadas ilhas Rasa e São José. Ali, golfinhos rotadores pulam, se exibem.
Os turistas parecem habituados aos carros, mas estranham os cavalos - muitos tiram os óculos de sol para vê-los. Um dos cavaleiros fala comigo. Alex Eduardo tem 23 anos e monta o cavalo Ventania. Há oito anos vive em Noronha desde que a mãe conheceu e se casou com um noronhense em Recife. “A gente quer manter a nossa tradição nordestina da vaquejada”, diz. Sem desmontar, ele me oferece um cartão com o número de telefone.
Fernando de Noronha é uma ilha com 7 mil moradores e o dobro de turistas. Há motos, bicicletas elétricas, ônibus, vans, furgões com janelas fumadas. Os buggys são os mais úteis, populares e barulhentos. O aluguel de uma dessas maravilhas movidas a diesel custa R$ 350 por dia e é possível estacioná-los em qualquer lugar (quem roubaria um carro em uma ilha?). Misturada à natureza mitológica de Noronha, os carrinhos coloridos e minúsculos pilotados por turistas dourados e musculosos dão à ilha uma aparência inescapável de parque temático.
E há os cavalos. Os cavaleiros de Noronha criaram uma página no Instagram e distribuem aos turistas os cartões que me deram. É um convite para fazer passeios a cavalo. “Para participar, olhe, é só ter coragem”, explica Alex Eduardo. A ilha tem 17 km² e é possível conhecê-la facilmente a cavalo.
Fernando de Noronha foi descrita pela primeira vez em 1502 e foi a primeira capitania hereditária brasileira. A França e a Holanda tentaram tomá-la dos portugueses que, com toda a sensibilidade colonizadora, transformaram a bela ilha em um presídio para presos considerados perigosos em 1730. A ditadura de Getúlio Vargas enviou presos políticos famosos para lá, como Carlos Marighella, embora muitos presos vivessem livres: jogavam bola, construíam casas, abriam estradas. Muitos foram anistiados e ficaram.
Na Segunda Guerra Mundial, os militares brasileiros construíram bases, aeroportos e estações para tratamento de água com a ajuda dos Estados Unidos. Muitos canhões, tanques e projéteis ainda são exibidos a céu aberto ou foram abandonados. Um pequeno cemitério, com um grama muito alta e gatos que dormem em cima de lápides, presta homenagens aos soldados mortos em combate na ilha.
Só em 1988 os militares deram a administração da ilha para Pernambuco, estado que os noronhenses chamam de “o continente”. Noronha virou, então, uma espécie de resort e um mini-país: há igrejas, boxes de crossfit, restaurantes gourmets, prostitutas, temaki, agências bancárias, correios, farmácias, delegacias.
Além das construções bélicas, os cavalos também foram abandonados pelos militares. Há mais de 100 deles na ilha. Alguns vivem em estábulos, sadios e bem escovados, e outros vivem livremente, vagando sob o sol forte, muito magros e esgueirando-se nos fortes e ruínas militares.
Em 2019, um macho e uma égua entraram no único aeroporto da ilha e foram acalmados por um comerciante. “O macho estava com ciúme”, disse o homem para um jornal de Recife. Foi um caso isolado, mas a administração da ilha não quer ver cavalos perambulando por Noronha.
Alex, o cavaleiro, me diz que os cavalos disputam com as agências de turismo e serão proibidos. Por telefone, o veterinário de Noronha, Carlos Diógenes, me confirma a informação, talvez em tintas mais burocráticas. Diz ele, há um projeto de retirada dos cavalos da ilha desde 2004. Um acidente durante uma cavalgada teria matado uma pessoa e, por precaução, seria melhor evitar novos episódios. A ideia é transportar os cavalos para o continente.
Carlos diz que só os abandonados serão apreendidos e, caso haja interesse, poderão ser doados para os moradores. Caso contrário, vão de navio até Recife. “Só os abandonados serão enviados para o continente ou doados”, garante. A fala não convence.
Junto com o cavaleiro Alex está Miguel Moraes, 18. Ele monta um cavalo sem nome. Pelas próprias contas, diz ser o último nascido em Fernando de Noronha. Há mais de duas décadas, um decreto exige que grávidas com 28 semanas dêem à luz no continente, pela escassez de equipamentos médicos. Miguel tem orgulho do próprio título: o último noronhense. E também medo de ser o último a conhecer a ilha onde nasceu em cima de um cavalo.
No centro histórico de Noronha, uma rua leva aos bairros com pousadas de luxo. Outra via leva para os bairros pobres, onde há ruas sem asfalto abertas pelos presos do passado. Para chegar a elas, os cavaleiros precisam retornar do Mirante e passar outra vez pelo posto de gasolina, pela Capela de São Pedro, pelo asfalto.
No meio do caminho, um turista filma o pôr do sol com o celular e, embora posicione o aparelho sobre uma rocha por muitos minutos, uma nuvem entra na frente do sol e atrapalha a filmagem feita para os seguidores no Instagram. “Achei que o sol iria pousar bonitinho, mas ficou escondidinho”, resmunga.
Agora o céu está cada vez mais escuro, com tons alaranjados. Os dois cavaleiros voltam para o centro lado a lado e tomam a via para o bairro pobre. Vão rápido. Nos próximos dias, eles farão um churrasco para celebrar o título de últimos guardiões da cavalaria de Fernando de Noronha.
“Antigamente, minha mãe dizia que todo mundo andava por aqui a cavalo”, diz Miguel.
Leitura interessante
Vale ler e assinar o Cartas a possíveis amigos, do Antônio Xerxenesky. Tive que copiar e colar o sobrenome dele, o que configura um baita nome de escritor.
Frase desinteressante
"Eu não disse e nem dizdisse"
(Policial militar aleatório em uma rua de São Paulo, setembro de 2022)
Link desinteressante
Nicolas Gage é sobrinho de Francis Ford Coppola, diretor do Poderoso Chefão. O nome verdadeiro dele, inclusive, é Nicolas Coppola.