A mulher que ergueu uma casa e um bar no paraíso.
Em São Paulo, uma senhora chamada Rosa Cavalcante transformou a casa onde mora, no Paraisópolis, em um bar. São cerca de 25 metros quadrados, mas já foram 45 no passado, quando para lá se mudou. Num espetáculo arquitetônico, dois pedreiros abriram um buraco para criar um balcão, uma janela-balcão. Por questão de privacidade, subiu-se mais uma parede na sala. Um canto foi dividido para ser alugado (valor: R$ 350). A casa foi ficando menor, menor. Menor do que já era.
Os olhos de dona Rosa são verdes. As cores não exercem uma função: os olhos são verdes e se parecem com bolas de gude - e é só isso. Os cotovelos são puídos, mas exercem uma tarefa importante: aguentar horas sobre o balcão.
Os pés de Rosa são chatos. A condição é raríssima e o problema lhe parece interessantíssimo. Nenhum médico encontrou uma solução. Nem mesmo aqueles do centro da cidade, do Hospital das Clínicas. Os pés são chatos - e ponto. E ela tropeça por causa deles. E como poderia esquecer? Tem também o problema da fibromialgia. Há muitos problemas.
Trinta anos atrás, dona Rosa veio de algum lugar de Pernambuco para ser babá em São Paulo. Babá é uma gentileza: ela cuidava das crianças e da casa e da comida. O dinheiro era pouquíssimo, mas deu para comprar o terreno da casa-bar e ir subindo os bloquinhos de tijolo.
As construções de Paraisópolis são assim, invenções magníficas. Existem prédios com mais de três andares ligados por uma imensa escada caracol. Há corredores com dezenas de portas onde moram mais uma dezena de famílias e dezenas de pessoas às vezes vivem atrás de uma única porta.
As casas de alvenaria são alaranjadas ou acinzentadas, a depender do reboco ou de sua ausência. Dentro delas vivem bailarinos, cabeleireiros, pedreiros, serralheiros, pintores, encanadores, motoristas, foragidos, universitários, músicos, artistas plásticos, cientistas, investidores, poetas, empresários, arquitetos e engenheiros (formais e informais), gente com fome, gente com banquetes preparados em churrasqueiras e panelas.
São 100 mil moradores e 14 mil negócios: dentistas, açougues, farmácias, mercados, funilarias, restaurantes. As ruas são repletas de banners, luzes, ruídos, veículos, pessoas. A rua Ernest Renan, principal do bairro, se parece com a Times Square pela exuberância, importância e excessos. Cachorros caminham de um lado para o outro; gatos atravessam os cruzamentos de forma apressada, como atrasados para um compromisso. No horizonte se vê prédios ricos do Morumbi que nunca somem da vista, como o Cristo Redentor. Há terreiros e igrejas evangélicas, grafites e paredes com chapisco, escolas, postos de saúde, um campo de futebol, conjuntos habitacionais, startups, cartazes surrados de vereadores e anúncios de compra e venda de imóveis com números de telefone com o símbolo verde do whatsapp ao lado. O sol reflete nas janelas dos ônibus saídos de um terminal em direção ao centro, nos cordões e óculos juliete. Um caminho de árvores margeia uma avenida. Muitos carros tocam música e as roupas estremecem com o funk. Há edifícios altíssimos onde, de alguma maneira, formigas conquistaram o ponto mais alto. Agentes de saúde, vestidas em jalecos azuis, caminham para um lado e, como um balé, idosos com carrinhos de feira e sacolas gigantescas caminham para o outro. Sobem e descem ladeiras. Há também casas mais distantes, feitas com retalhos, lascas de madeira, papelão e lona. São montadas como um esconderijo criado pela imaginação de uma criança - e onde moradores esqueléticos cozinham em latas de tinta enquanto folhetos de supermercados desaparecem nas pequenas fogueiras.
Mas a casa de dona Rosa é de alvenaria e tem um balcão onde ela vê, com seus olhos de bola de gude, as escadas caracóis, cores, portas e seres humanos que fazem parte da montagem complexa de uma cidade e de um lar. No bar dela se pode beber, beliscar amendoins, salgadinhos ou só cumprimentá-la. Só isso. Dona Rosa não bebe. “Sou da igreja”, diz. E tem o problema dos pés chatos. “Se sóbria eu já tropeço, imagina se eu bebo?”
Indicações de leituras interessantes
Assine o Coifa, sobre afeto e comida. O texto do Cirilo Dias sobre os cheiros da cidade me comoveu muito.
Assine o Tá Todo Mundo Tentando para ter aquela sensação boa (às vezes) de desabafar com um amigo. A Gaía Passarelli vai naquele lugar certinho dentro da gente para falar sobre rancor.
Frase desinteressante
“A capivara só te morde se você der mole”
(Anônimo em mesa de bar, janeiro de 2022)
Link desinteressante
Após a guerra na Ucrânia, a estátua de cera de Vladimir Putin foi retirada do museu de Olímpia, no interior de São Paulo.
Leia o arquivo Desinteressante. Na semana passada, o sapateiro.
“O Desinteressante tem as melhores histórias que eu nunca li”