A mulher que se apaixonou por um nazista procurado.
Eu procurei por Elsa durante muitos anos. Bati em portas, conversei com guardas desconfiados e escondidos em guaritas, outros prestativos e curiosos. Enviei e-mails e mensagens para a família de Elsa e nunca tive resposta. Eventualmente a encontrei no Facebook, mas ela também nunca respondeu. Para compensar a minha incapacidade em encontrá-la, eu compus, então, uma versão própria dela, a partir das coisas que achei e daquelas que pude imaginar.
Encontrei as fotografias antigas de Elsa em Diadema, onde aparece com os braços cruzados, vestida em uma blusa de lã verde; em outra, sentada no colo de um velho com bigode grosso, seus cabelos escuros na época caíam sobre os ombros; Elsa em uma fotografia recente, em frente a um televisor desligado e onde está seu reflexo; Elsa com um retrato antigo e emoldurado nas mãos, dos tempos que diz ter saudades; Elsa com os cabelos escorridos e escuros novamente, mas agora ao lado de amigos, em uma casa que parece no campo.
Nunca a esqueci e, com o passar dos anos, me policiei para não permitir que minha memória apagasse a lembrança do nosso desencontro. As fotos me ajudaram. Pude imaginar Elsa pelas ruas de Diadema, andando pelo bairro de Eldorado, enquanto se ouve as folhas que chacoalham em frente à represa. Pensei em vê-la nas travessas onde andei em tentativas de encontrá-la. Imaginei Elsa na chuva, um fim de tarde, quando a água toma a curva das calçadas em direção aos bueiros e do asfalto sobe um cheiro úmido, como um tempero que nos faz lembrar infâncias.
Em uma das minhas últimas tentativas, escrevi a uma jornalista que a encontrou. Ela conheceu Elsa em Diadema. “Ela odeia jornalistas”, me adiantou na mensagem pelo Linkedin. “Conversei com ela e a família na casa dela, mas eles se mudaram e não sei mais o endereço”, acrescentou. Ela encerrou com um: “boa sorte”.
Uns seis anos antes, ouvi: “ela vivia aqui batendo no portão. Dizia que tinha saudade daquela época mais antiga”, disse a dona da casa onde Elsa trabalhou. Lá, uma escada leva para os cômodos do imóvel e a uma edícula, iguais ao que eram no passado.
A qualidade de um jornalista não se dá pela capacidade de escrever bem, como muitos imaginam, mas pela habilidade em encontrar histórias sobre o outro e para o outro, sob quaisquer condições. A história de Elsa vale meu esforço e minha vaidade: ela, uma empregada doméstica, se apaixona sem saber por um homem abjeto. Um nazista.
Josef Mengele se apaixonou por Elsa. O médico nazista era um torturador entusiasmado, incansável. É impossível lhe conceder o título (mais ou menos) digno da condição humana - ou de qualquer coisa viva. Mengele tinha os atributos dos nazistas: praticava uma maldade tão crua, tão inacreditável e sem remorso, que foi alçado à categoria mitológica.
Mengele torturava judeus, ciganos, homossexuais, anões, gêmeos. Ele os deixava congelar; costurava uns aos outros para criar siameses artificiais; escolhia a dedo, dava banho quente e cama para as vítimas que, mais calmas e relaxadas, recebiam tinta nos olhos para mudar a pigmentação das íris; Mengele anotava em uma prancheta quanto tempo bebês levavam para definhar até a morte quando separados de mães puérperas; ordenava a morte simultânea de gêmeos para analisar a resistência de corpos idênticos à hipotermia, à privação de sono, à fome, à sede. Mengele selecionava as vítimas de suas torturas nos portões de Auschwitz. Quem ele escolhia iria para a tortura, da qual chamava de ciência. Quem não era escolhido ia para as câmaras de gás. Há filmes, documentários e livros que narram a vida de Mengele: a fuga, a vida no Brasil, a morte, o encontro com o filho. Em uma das ficções, Mengele tenta clonar Adolf Hitler. O nazista era um arauto da morte de verdade remontado pela imaginação. Como qualquer nazista, era também um covarde.
Quando a guerra acabou, Mengele fugiu para a América do Sul para se livrar dos tribunais de guerra que o matariam ou o condenariam à prisão perpétua. Foi acobertado por amigos nazistas na Argentina, Paraguai e Brasil. Usou nomes falsos. Deixou o bigode crescer. Usava um chapéu. Viveu uma vida normal no novo continente. Mudou-se para Eldorado, entre Diadema e Santo Amaro, onde conheceu Elsa na década de 70.
O Eldorado é um bairro longe do centro. É muito pobre e muito rico. Depende de onde se observa. No passado, europeus se instalaram às margens da represa que existe ali. Eles atracaram lanchas e barcos à vela, criaram clubes, fecharam ruas com cancelas e criaram uma comunidade fechada.
Elsa foi chamada para ser governanta da casa do seu Pedro. Não era o único europeu na região. Diadema é próximo das indústrias que, no passado, contrataram engenheiros e profissionais estrangeiros para trabalhar em cidades vizinhas, como São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul. Com os anos, os europeus dali foram rodeados por favelas colossais nos morros - tão altos que lembram reinos medievais, alaranjados pelos tijolos à ainda mais laranjas com o sol.
Os detetives judeus não esqueceram de Mengele, mas não o encontraram vivo. O nazista recebeu a visita de um filho no Brasil. Em entrevista à após a morte do pai, Rolf Mengele reconheceu a maldade de Mengele, o que não parece ter-lhe causado incômodo suficiente para entregá-lo. Se mencionou Elsa, não deu muito importância. A vida dela foi vivida nas sombras da história ocidental e na de um homem. (O filho também virou personagem de ficção e aumentou aura folclórica da família).
A rotina de Mengele com Elsa era monótona. Ele datilografava cartas e se encontrava com amigos. As indústrias da família de Mengele enviavam dinheiro secretamente. Um casal brasileiro o acobertou na casa na década de 70. Mengele nunca demonstrou arrependimento.
“Ele era gentil”, disse Elsa em entrevista para uma revista à época. Ela sempre sustentou que descobriu a verdade anos após deixá-lo.
No Brasil, o nazista morreu impune em uma viagem com amigos para Bertioga, quando teve um mal súbito. Houve descrença se o “Anjo da Morte” realmente viveu e morreu no Brasil. A Polícia Federal confirmou a informação após exumar a ossada apodrecida.
Tentei formular como Elsa se sentiu quando descobriu quem era Mengele. Nas informações que restaram aqui e ali, tudo que diz é ter saudades daquela casa, daquela época, do bairro.
Em uma das versões, Mengele foi tão obcecado pela garota de 24 anos que contraiu problemas estomacais. Em outras edições, o torturador se afastou quando ela lhe exigiu um casamento, como deveria ser, dada a diferença de 40 anos de idade. Por medo da documentação falsa, teria desistido e seguido em frente. Elsa nunca falou exatamente mal de Mengele nas poucas entrevistas que concedeu. Diz que seu Pedro pagava bem.
Eu não ajudei a encerrar a história. Em 2015, ainda na faculdade, segui a dica de um grande amigo e encontrei a casa de Mengele em Diadema. O lugar tinha virado um buffet de festas. A estrutura continuava igual. Achei uma história tragicômica. Ficou ainda mais curioso quando cheguei lá: o fantasma de Mengele assombrava os convidados. Na ocasião, a madrinha de um casamento passou mal na minha frente. Segundo a dona da casa, um sintoma da presença do nazista ainda naquela casa.
Dois meses depois, a reportagem foi publicada em uma revista. Nos meses seguintes, jornais e emissoras de televisão foram até lá atrás de novos contornos. Os repórteres de uma emissora tentaram encontrar Elsa, mas também não conseguiram. A dona da casa dizia que Elsa passava ali, olhava o portão, e chorava. Como uma alma penada. Foi a mesma descrição que recebi.
Penso que nós nos apaixonamos por pessoas legais que se tornam seres horríveis com algumas horas de voo. É comum. Nunca, porém, imaginamos se apaixonar por alguém que, literalmente, formava o quadro de oficiais nazistas. (Embora muitos possam parecer).
Imagino, então, que Elsa se dispôs à realidade que lhe foi apresentada naquele momento, não por aquela que lhe foi escondida, e acho que é mais ou menos assim que todo mundo se apaixona.
Mas é especulação. Não sei muito mais. Não sei se compreendia, de fato, o que foi o Holocausto. Não sei se acreditava, mesmo, que aquele homem era verdadeiramente um torturador genocida. Nem sei gostava tanto dele assim.
Reencontrei um livro escrito por americanos no início dos anos 2000 quando voltei às minhas anotações parar tentar entendê-la. O texto diz que Mengele era possessivo e chorava muito quando Elsa tinha um paquera nas ruas. Ele a apresentou à música clássica e a encheu de braceletes, joias, brincos. Com a resistência em oficializar o casamento, Elsa disse a Mengele que se casaria com outra pessoa em 1978. "Ele disse que iria morrer em breve [por causa disso]", disse ela aos escritores. Ela, então, se afastou do Eldorado e Mengele perdeu o "propósito de viver" com sua ausência. Um ano depois, o nazista racista e sádico morreu.
Em entrevista a um canal francês, mais de 40 anos depois, Elsa segura um retrato antigo e cola uma memória na outra para descrever aqueles dias como "uma época boa". Os cabelos são louros, tingidos, com o preto e o branco brigando por espaço nas raízes. Teria sido diferente se eu tivesse encontrado com ela? O que ela poderia ter me dito além? Ainda me pergunto o que Elsa sentiu, mas percebo que a gente sente muito e depois esquece. Sente e depois transforma aquelas lembranças em saudades carinhosas, às vezes para se conformar com a incapacidade de manusear uma história fora do nosso controle. De qualquer maneira, também não a reconheceria em qualquer rua, a andar enquanto olha para os pés. Elsa deveria estar no cenário exato onde a imaginei, em seu rosto antigo. Só assim, talvez, a pudesse reconhecê-la: em frente das águas sem maré da represa, como a encenar minhas expectativas.
Leitura interessante
Assine a Orgânico. A Nila Maria escreve ensaios sobre alimentação e produção de comida, mas vai além disso. O texto dela sobre êxodo me encantou.
Conheça o Dia Sim, Dia Não. O Davi Rocha tem um olho bom e vê tudo que tá acontecendo. Sério. Recomendo a análise dos indicados ao Oscar.
Frase desinteressante
"Ai, eu adoro gente que fuma pendrive"
(Anônimo na fila de uma roda gigante, março de 2022)
Nota do autor
Muita gente nova chegou com o tweet da Miley Cyrus. Só queria dizer que o show dela foi tu-do. Obrigado por estarem aqui.
Link desinteressante
Nos anos 20, o governo dos Estados Unidos instalou setas de concreto no chão para guiar os pilotos de avião. O método ficou obsoleto rapidinho, mas as esculturas continuam lá.