Bipolaridade: as duas histórias internas na vida de uma só garota
Às vezes, a universitária Vitória Pereira não se reconhece. Os namorados também nunca a conheceram, e talvez nunca poderiam. O último namoro acabou há um mês, quando ela acordou e percebeu que não amava mais aquele homem. Era comum: acordar e não sentir nada. Era comum acordar e, ao contrário, amar a qualquer pessoa, a qualquer namorado, a repetir ou buscar um novo toque, a permitir ser conhecida em sua totalidade por aqueles que a amavam. O talvez. Vitória sabia e às vezes temia as impossibilidades, as instabilidades dos seus desejos, o descontrole sobre suas tarefas, desapropriadas de si com a ferocidade do talvez, do a depender de como eu acordar. No fundo, sentia-se duplicada. Ou triplicada. Duas mulheres aprisionadas dentro dela. A terceira parte era seu corpo físico de 20 anos, onde as duas entidades internas alternavam e, às vezes, se sobrepunham, simultâneas.
“O que você tem, Vitória”, disse o médico, “é bipolaridade.” Bipolar. Fazia sentido. “O bipolar tem um período de depressão e um período de euforia. A euforia pode soar como felicidade ou empolgação e, na verdade, é uma época produtiva, cheia de ideias, sensação de grandeza, libido sexual intensa e agitação. Nós a chamamos de mania. Geralmente, logo depois da mania, os projetos são desfeitos abruptamente e a pessoa retorna para a fase da depressão. Também existe a eutimia, uma zona cinzenta entre as três, sem grandes intensidades e certa apatia”.
Ela era, então, um personagem perfeito. Poderia ser a vítima, a heroína, a vilã de um enredo inteligente, com várias interpretações abertas ao público. Uma mulher engenhosamente criada por roteiristas competentes de Hollywood. Na televisão, poderia ser Anne Hathaway na série Modern Love. No início do episódio, a personagem vai às compras, conhece um homem bonito e inteligente, o leva para jantar e é produtiva no trabalho. É carismática, astuta, sensual. A seguir vem a tempestade. É demitida por faltar ao trabalho, é abandonada pelo homem quando desaparece dos encontros e o mundo, aquele mesmo mundo hospitaleiro à qual manobrou e posou com suavidade nos minutos anteriores, é implacável contra sua depressão, sua improdutividade. Vitória poderia se habituar a um anticlímax semelhante, às viradas acentuadas presentes em uma história. Afinal, as duas outras mulheres sempre estiveram com ela. Sem os nomes, eram uma dupla selvagem e anônima. Com a definição dos papéis, ela poderia, talvez, compreender os destinos de cada personagem, prever desfechos, interferir no desenvolvimento e, quem sabe com alguma sorte, ordená-las, pacificar a disputa e concluir a narrativa, compactá-lo em um gênero. Um drama, uma comédia, um suspense. O que importava era a coesão, os cortes indetectáveis de cena.
O homem que ela deixou de namorar, por exemplo. Os dois nunca tiveram uma paixão nos moldes viscerais. Havia uma conexão forte, mas era um ímpeto controlável. Um amor aprendido. A percepção das ações de um ensinava o outro a agir, demonstrava qual jogada executar, a quando blefar. O diagnóstico facilitou as regras. O homem sempre esteve em desvantagem numérica e, quando a namorada contou sobre a bipolaridade, ele se julgou um jogador melhor. Ela tinha uma doença. Uma doença que precisava ser cuidada por ele, pelas pílulas, pelos médicos. Então, deveria ser como um pai. Seria líder de um agrupamento paterno para amar aquele corpo, para uni-lo, encaixá-lo harmoniosamente com os dois pólos que o habitavam.
Foi um erro. “Minha bipolaridade tem a ver com os traumas de infância”, Vitória concluiu. Era um consenso. A depressão, a mania e as ações feitas por cada uma delas tinha a ver com o pai original. Aquele que, sem saber ou se importar, desencadeia comportamentos que, por muito tempo, ela acreditou serem indomáveis. O namorado nunca iria entendê-la. O sexo da mania impunha uma trégua entre eles que nunca foi, verdadeiramente, desejada. Na depressão, ela via na mandíbula, na clavícula e nas mãos grossas dele -- partes que desejava na mania -- um ser anômalo. Via o rosto do pai. “Ele passou a me tratar como uma filha”, diz, “uma ligação intensa, mas havia dias que não sentia nada por ele”.
As fases da bipolaridade são indefinidas. O ciclo da mania pode durar meses, dias ou semanas. A depressão pode durar meses, dias ou semanas. A eutimia pode durar meses, dias ou semanas. “Não há uma regra”, disse o psiquiatra. “Um relacionamento amoroso pode dar mais certo ou menos certo a depender do estágio e do tratamento dado à doença".
Mas se há um agente que torna a bipolaridade tão desgastante, é a vida moderna. A improdutividade e a inconstância são imperdoáveis. O ciclo da mania incentiva o bipolar a criar teorias sobre essa realidade e imaginar uma trama escondida, planejada silenciosamente só para machucá-lo. Para escapar, o bipolar toma decisões importantes. Um emprego é abandonado, um casamento desfeito, uma universidade é trancada. Os patrões, os professores, os filhos, os parentes e os namorados nem sempre sabem da complexidade e da imaturidade dos planos. A vida secreta imaginada pelo bipolar, na verdade, pode ser a própria vida. “As pessoas têm preconceito: acham que uma mudança de humor é comum”. Mas nem toda ação é impensada. Talvez, a mudança planejada de destinos pode protegê-lo e criar um uníssono mais confortável.
Vitória terminou o namoro, abandonou o emprego e mudou de cidade. Os chefes nunca souberam o que aconteceu. No interior do Rio Grande do Sul, conseguiu um novo emprego em um shopping sem mencionar a doença. Os médicos receitaram medicamentos que, incapazes de extinguir a dupla que carrega consigo, a terceira, ao menos lhe ajudam a perceber melhor os desdobramentos de sua vida, a detalhá-los e interpretá-los em suas várias camadas e consequências. Diferentemente das séries, nunca teve exatamente uma história de amor para contar. “As pessoas nunca sabem quem você é. Nunca”, diz. “Tive namorados que se relacionam com a minha doença, não comigo”.
Leitura interessante
Você vai gostar da Desculpa a demora, da Natália Guadagnucci. Uma reflexão bem interessante sobre paternidade pode ser o seu ponto de partida.
Frase desinteressante
"Ela faz o que quiser. Eu sou hétero"
(Casal em restaurante, em outubro de 2022)
Link desinteressante
Em "A paixão de Cristo", o diretor Mel Gibson defendeu abolir legendas do filme falado em aramaico, latim e hebraico. Foi convencido do contrário. Inexperientes sobre o assunto, os americanos colocaram legendas demais. "A gente não precisa de um soldado romano falando 'ei, cara' com legendas".