Capitão se aventura em mar sem ondas no meio de São Paulo.
O veleiro navega sobre a água escura e calma da represa. Ilhotas de mata densa e verde surgem esparsas e conectadas pela água como um arquipélago. Olhando para o horizonte se vê prédios que parecem pequenos à distância. A chuva se aproxima e dá para senti-la pelo vento e vê-la cair de nuvens que se agitam. O céu é todo branco e a garoa piora o frio. No comando há um homem de cabelos brancos e lisos, com óculos e um chapéu de pescador.
Momentos antes, o homem cochilava em um assento no píer. Os passageiros não sabiam se o passeio aconteceria com a chuva.
As viagens pela represa são reservadas com antecedência e custam R$ 50 por pessoa para navegar por uma hora. Exige-se, porém, preparo: verificar cordas, a vela, avaliar o vento, comparecer horas antes. O pagamento é feito na hora.
Até quatorze passageiros podem embarcar, mas naquela tarde apenas duas pessoas aguardavam pelo veleiro do capitão. “O tempo está até bonito, não está?”, contemporiza uma funcionária ansiosa.
A chuva caiu, então, grossa, acelerada e gelada feito uma ducha à beira mar. Seria impossível ver o pôr do sol em Guarapiranga como prometido mas, apesar das nuvens taparem o céu, a chuva concentrava-se locais específicos. Caía intensa aqui e ali e permitia desviar das pequenas tempestades. O capitão acordou do cochilo quando a chuva passou. Os dois passageiros embarcaram. Com eles embarcou um garoto, um auxiliar. Ele parece experiente, mas a proximidade com o capitão o condena à aparência de um aprendiz. O veleiro desatraca e se afasta da margem vai cada vez mais adentro da represa, aproveitando-se do vento forte para acelerar e circundar as ilhotas. O capitão tem um nome: chama-se Domingos “Mingola”. Há muitos anos veleja na Guarapiranga. Leva casais para passeios românticos ou famílias com crianças da cidade que jamais navegaram.
“Se vocês quiserem, podem ir até a ponta do veleiro”, arrisca o garoto. “Ainda não”, impõe o capitão. A pedido do homem, o garoto busca uma caixa de som para animar a viagem então bucólica. O aparelho toca uma versão ao vivo de Every Breath You Take, do The Police. A canção é interpretada por uma outra banda e soa mais alegre e pior do que a original.
“Toma. Melhor vestir um desses blusões. Aqui faz muito frio”, diz o garoto. Os casacos têm listras horizontais, são quentes e grossos, mas confortáveis e leves. Os passageiros pedem para interromper a música. O capitão parece constrangido, mas aceita o pedido e se dispõe a descrever curiosidades na paisagem. “Aquela ali é a Ilha dos Macacos”, ele diz. “Do outro lado está a Ilha dos Amores”, acrescenta. “Não sei o porquê são chamadas assim”.
Algas navegam ao lado do veleiro. Ali perto há um kitesurfe que mal se vê a pipa escondida dentro do céu nublado. Velas de windsurfe passam extremamente rápidas com a ventania. O capitão, então, abre a vela e acelera o veleiro. A embarcação fica quase na vertical para fazer uma curva acentuada. Os dois passageiros se seguram e veem somente a água abaixo dos pés. Na pequena cabine à frente, uma mochila rola de um lado para o outro. “Ali é uma construção antiga e abandonada”, aponta o capitão para uma construção em ruínas. As represas são criações fascinantes: dão a ilusão de que são o mar, um rio ou uma lagoa. Mas o nome, as placas e os mapas lembram suas origens humanas o tempo todo. São águas sem a devassidão e mitologia do mar selvagem, nem a fascinação dos cursos d’água formados em tempos milenares pelo complemento de coincidências naturais incontáveis. São como uma repartição pública: formais, com datas de construção, inauguração e uma função perpétua.
São águas melancólicas, incapazes de escapar do nosso domínio. Mas ainda há nelas a desobediência da natureza: as ilhotas da Guarapiranga escorregam cada vez mais com as chuvas e os sedimentos deslizam a caminho do fundo: muito em breve, as ilhas podem desaparecer e deixar órfãos dezenas de pássaros.
Há também represas que inundaram cidades povoadas há décadas, como se a existência delas sobrepujasse a importância da vida humana, castigando as memórias das casas e das pessoas como no mito de Atlântida. Em pelo menos um caso, foi imposta como castigo: o governo brasileiro afundou a vila Canudos com a construção de uma represa onde Antônio Conselheiro acreditava ser um solo sagrado.
Guarapiranga foi construída em 1907 pela Light & Power e desde os anos 50 abastece exclusivamente os mais de 12 milhões de moradores da capital. Nas margens instalaram-se clubes náuticos, retiros de associações, pousadas e clubes. Cruzá-la a barco permitiria percorrer talvez centenas de quilômetros rapidamente, cruzando o rio Guarapiranga até o rio Pinheiros, não fosse as águas represadas do primeiro e a intoxicação pelo esgoto no segundo.
Guarapiranga, então, tornou-se um ser apartado de São Paulo. No caminho até lá ainda há vegetação de Mata Atlântica, cortada por casas sem muro e estradas de terra como uma cidade do interior intocada e calma.
“Eu não sei nadar”, confessa um dos passageiros do veleiro para provocar graça no silêncio. O capitão se revolta com a informação. “Você vai aprender comigo hoje. Fica tranquilo”, diz.
O passageiro ouve e sorri como se a fala fosse uma retribuição à piada. Há muito ele desistiu de aprender a nadar, mas se tranquiliza com a ignorância de que não sabe que nadar é um ato traiçoeiro. As águas abaixo dele são profundas, com metros de profundidade. Os afogamentos são comuns.
“Agora vocês podem ir até a ponta”, diz o homem. Os passageiros vão até lá e o vento sopra fortemente. O capitão ordena o auxiliar a acionar a caixa de som mais uma vez. Desta vez, ouve-se a trilha de Titanic. A piada funciona. O veleiro vira à direita em velocidade. As cordas esticam. A segunda passageira sorri e filma com o celular onde escorrem gotículas pela tela.
O veleiro para no píer e os passageiros desembarcam. “Vou te ensinar a como nadar”, diz o capitão. “Você enche o peito e fica parado. Se você afundar, o segredo é ficar lá embaixo parado. Não faz nada. A pior coisa que se pode fazer quando se cai na água é ficar se debatendo. Você vai perder energia e vai morrer rapidinho”.
O passageiro sorri e evita a ideia de se ver sozinho no meio da água. Ele tenta se despedir. “Calma, ainda não terminei. Você precisa ficar quieto e encher o peito. Qual o conceito da uma boia? Ela flutua porque está cheia de ar, não é? É a mesma coisa”, acrescenta. Uma garoa embaça os óculos de grau. Atrás dele há a represa e ainda mais atrás há os prédios. O garoto se despede dos passageiros, retira os estofados do veleiro e recolhe a vela.
Pouco antes de dormir, o passageiro percebe que cantarola a trilha sonora de Titanic. A canção o perseguiria por dias. Instantes antes de apagar, uma frase do capitão volta à sua mente. “Aqui é diferente do mar”, disse o homem em algum momento. Parecia revirar uma lembrança triste.
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Leitura interessante
É chover no molhado, mas indico a newsletter do Ronald Rios. Como sempre, o cara tá em uma fase criativa excelente. Ri bastante com o texto sobre patinação no gelo.
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Frase desinteressante
"Eu nunca fui parado pela polícia entre os 14 e 17 anos"
(Anônimo na mesa de bar, março de 2022)
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Há uma Wikipédia para empresas que não existem. Elas têm história, logomarcas, cidades operação de mentira e até uma lista de concorrentes. Um mundo maravilhoso. (dica da JVCT).