O inferno particular do dono de karaokê que odeia Evidências
Texto por Laura Reif
Em um dia qualquer de maio de 2016, fui convidada para um aniversário na rua da Consolação, em São Paulo. O nome do local era “Videokê do Léo”, um nome bem clean, sucinto. Sou de São Bernardo do Campo e não tinha hábito de ir para São Paulo. Me perdi ali perto do Belas Artes, a caminho do bendito bar, e pedi ajuda para Miss Carolaine, uma travesti que veria mais vezes no futuro.
“Claro que sei onde é, querida! É atravessando aqui. Só andar para a direita, ali naquele boteco, tá vendo?”, indicou com os dedos magros para um bar com cara de nada, onde também havia uma placa com o nome “Belas Artes” para ornar com o cinema à frente. Ouvi o conselho de Carolaine.
Estranhei quando na calçada do local havia muitos jovens hipsters, que fumavam cigarros e tomavam litrão em copos americanos. Estou acostumada a encontrar esse público em locais que servem bebidas superfaturadas e em copos desnecessariamente enfeitados. Mas Carolaine estava certa: eu havia encontrado.
O bar Belas Artes é um quadrado, com a luz de teto alta e fria. No balcão dormem salgados velhos e algumas mesas de madeira são posicionadas sobre o piso de granito cinza, encostadas nas paredes de azulejos brancos. Uma estátua de Nossa Senhora de Aparecida decora uma escandalosa geladeira amarela da Skol que resfria os litros de cerveja. O clássico botecão. No fundo, há um serviço terceirizado de videokê. Os jovens cantavam Evidências aos berros.
O cheiro da chapa quente fritando carne para algum lanche permanece a noite inteira e transita entre os jovens, velhos, operários, indivíduos descolados com glitter no rosto ou tinta nas calças e tipos mais conservadores (homens vestindo camisas polo). É um público difícil de ler. A paz entre as nações.
No fundo do Belas Artes há duas televisões de tela plana que passam as letras das músicas com o clássico logo da Raf Videokês, empresa que animou tantas festas nos anos 90. (Aquele do leão com um microfone). O som é alto. Os clientes de todas as mesas, embriagados, cantam junto qualquer coisa que os donos da canção da vez escolheram.
O palco para performar é no espaço entre as mesas. Em um dos cantos, sentado atrás de uma mesinha quadrada de madeira, clicando em coisas em um notebook e anotando palavras e números em um caderno, está um homem calado e estranhamente sério para um ambiente tão descontraído.
Escondido sob óculos de armações pretas e grossas está o famoso Léo, dono do serviço musical terceirizado do Bar Belas Artes. Como sou apaixonada por videokês, não preciso dizer que me tornei cliente assídua e frequentei o bar por anos. Cada sábado mais intrigada pelo Léo.
Eu chamo o figura somente pelo apelido porque ele se recusa a revelar o nome completo e a idade por conta de problemas judiciais, segundo ele. Sei que é de Fortaleza, no Ceará, veio para São Paulo em 1997, quando em pouco tempo foi presenteado com uma máquina de videokê e fez disso seu ganha pão.
Ele aparenta uns 40 anos, com uma pele bem cuidada, cabelos pretos e de estatura baixa. Há vários pontos para enumerar sobre a personalidade de Léo na noite e fora dela. Primeiramente, durante o trabalho, um destaque é o mau humor. Há várias regras que devem ser seguidas para que se aproveite o videokê de maneira que o dono do equipamento não se irrite e não se canse. Eu o chamo de “Estatuto do Léo”. Todos o seguem à risca o que está escrito em várias folhas sulfite. Os papéis digitados no Word decoram as paredes.
É admirável a insistência em espalhar textos de tamanha dificuldade de compreensão para grupos alcoolizados e ainda esperar nisso alguma complacência. “Não é permitido ficar conversando com a pessoa que comanda o videokê”: a frase em terceira pessoa impera no folheto colado na parede acima do espaço onde trabalha.
É comum encontrar Léo jantando, de cara fechada, enquanto assiste a qualquer coisa no notebook… E com fones de ouvido para bloquear as músicas e conversas altas que abarrotam o ambiente. Certa vez, tentei pedir duas músicas e ele estava comendo arroz, feijão e bife enquanto assistia Mais Você da Ana Maria Braga. Em um sábado. Uma hora da manhã.
As músicas devem ser solicitadas sempre em pares por algum motivo que até hoje não entendo. Segundo Léo, é mais fácil para que ele organize a lista em seu caderno desse jeito. O estatuto está presente a todo momento. Além das folhas sulfite, está nos letreiros luminosos em cima de uma das televisões em frases longas demais para serem lidas nesse tipo de aparato. Uma delas: “Não temos condição de dizer se a sua música é a próxima”.
“Não gosto de trabalhar à noite. Sempre fui assim. Nunca gostei de festa, badalação… Trabalho em uma coisa que nunca gostei”, me disse em um tom cínico, como se já tivesse repetido a frase vinte vezes, o que é bem provável considerando que há 18 anos trabalha com videokê. No Bar Belas Artes, desde 2004.
Há clientes que frequentam o lugar desde essa época. Durante o dia, o bar serve almoço para trabalhadores que realizam algum serviço nos arredores da Consolação e Avenida Paulista, com pratos feitos enormes e baratos. Tudo muda quando anoitece e o videokê começa a funcionar.
Léo é homossexual e o bar fica em um ponto que concentra boa parte do público LGBT da noite paulistana. Há mais de 11 mil músicas no acervo do videokê - e parece uma média justa. Os três cadernos plastificados pesadíssimos contam com qualquer música que vem à cabeça. Qualquer música. Assim, virou uma atração para quem quer “fazer um esquenta” antes de ir para a balada ou fazer a noite ali mesmo.
É o caso do professor de inglês Augis Júnior, de 45 anos, que é cliente há 14 anos. Todo fim de semana ele está lá, como algum personagem do super trunfo. Loiro, de olhos claros, veste boinas e regatas justíssimas, quando não completamente transparentes, arrumadas minuciosamente para ficarem por dentro das calças skinny coloridas.
Sempre canta as mesmas músicas, como “Believe” de Cher ou “Hello” de Lionel Richie e entretém os jovens que o observam com admiração pela confiança e atitude. Ele grita “Shut up, bitches!” toda vez que alguém fala alto demais e atrapalha sua cantoria desafinada. Augis é uma das estrelas mais esperadas do videokê.
Mas para Léo não existe lealdade. Ele pula a vez de Augis quando ele não comparece imediatamente ao microfone quando é chamado. É assim com todo mundo, não há favoritismos sob as leis de Léo. Não importa os quase 15 anos de dedicação do professor de inglês e estrela da noite ao karaokê.
Há um pequeno documentário sobre o Bar Belas Artes no YouTube. É um trabalho da Escola de Comunicações e Artes da USP. Nele, Léo declara seu ódio pela noite, como sempre. Ele balança a cabeça em forma de reprovação quando ouve o nome dos hits que mais o aborrece. “A gente enjoa pra caramba, é terrível. A que eu não suporto mais é ‘Evidências’. Também ‘Verdade Chinesa’. É um saco, mas tem que ouvir.”
Fiquei estarrecida lembrando quantas vezes cantei Evidências, desafiando o soberano dos videokês. Depois que me deparei com essa declaração, nunca mais cantei a música na frente de Léo. Respeito acima de tudo.
Conversei pouco com Léo nesses dois anos como cliente por medo de irritá-lo, mas quando nos falamos em um dia normal de semana, seu humor parecia outro. Tinha um motivo: Léo havia encontrado um substituto. Jorge, um rapaz jovem e simpático, parece gostar desse trabalho. Mais do que o Léo, ao menos.
Mas o mau humor não é o único elemento da personalidade dele. Semanas após a contratação de Jorge, foi difícil reencontrar Léo, o astro por trás da marca “Videokê do Léo” no Bar Belas Artes. Eu senti saudades, de verdade. Demorou, até que vejo um homem em cima de um hoverboard subindo a Consolação.
O meio de transporte tinha luz neon e brilhava de noite enquanto o homem se aproximava pela calçada. Era o Léo. Ele sorriu e me cumprimentou. Estava contente. Abraçou os colegas de trabalho, deu uma espiada no serviço de Jorge - apelidado por mim de “Novo Léo” - e foi embora tranquilamente. Só nos falamos novamente quando entrei em contato com ele para essa entrevista.
Ele contou que seu sonho é ser youtuber e que há seis anos tem um canal de vídeos. Este agora, de acordo com ele, está dando dinheiro suficiente para custear o serviço do Novo Léo. “Sempre foi um sonho pagar alguém para que eu não precisasse trabalhar à noite", desabafou.
Seu canal no YouTube é LINDON JOHNSON — TIO DO TIRULIPA. Fiquei em dúvida se Léo seria um pseudônimo para Lindon Johnson (talvez o nome dele fosse em homenagem a Lyndon Johnson, presidente dos Estados Unidos entre 1963 e 1969) mas ele não quis confirmar. A segunda parte do nome do canal é real: o operador de videokê é realmente tio do… Tirulipa.
Para quem não sabe, Tirulipa é o humorista filho do ex-palhaço e político Tiririca. Léo é irmão da mãe do ex-comediante. A vinda para São Paulo foi para realizar o sonho de agenciar o sobrinho e fazê-lo crescer na carreira, seguindo os passos do pai. Infelizmente, tio e sobrinho brigaram e não se falam até hoje. Léo diz que é um assunto muito sensível. “Não quero falar disso porque ele não fez por mim o que fiz por ele. Dói um pouco, passei por cima de tudo para fazer dele o que é hoje”, contou a contragosto.
Não acreditei no início, mas apurei que o Domingo Show, da Record TV, fez um programa sobre o reencontro de Léo com o sobrinho Tirulipa. Seu nome real, mesmo assim, não foi revelado.
Apesar de tantos rancores na vida, Léo parecia mais tranquilo depois de sair do karaokê. Como youtuber, fez reviews de aparelhos televisores, revelou como foi se assumir homossexual para a família, fez um vídeo de mais de 20 minutos esclarecendo a desavença com o sobrinho Tirulipa e parece estar rendendo o suficiente para bancar o Jorge, o Novo Léo.
Apesar de tudo, ele admitiu que a melhor parte do detestado trabalho que tomou grande parte de sua vida foi conhecer gente bacana e fazer amigos. Acho que o tempo exposto à vida noturna foi tanto que o Velho Léo disse que sonha em ser um grande youtuber e também um ermitão.
Me contou, esperançoso, que se ganhasse na loteria, iria se trancar dentro de casa e não sairia de forma alguma, nem para fazer compras. “Pagaria alguém para fazer para mim”, explicou com orgulho, aguardando o dia de realizar essa meta.
Atualizações em abril de 2020 e março de 2022:
O canal de Léo continua na ativa e fiel à proposta inicial. Os reviews de eletrônicos e eletrodomésticos permanecem como a programação principal. Em um vídeo gravado com o sobrinho Tirulipa em março de 2020, Léo conta que largou a vida em São Paulo para morar na Bahia com o objetivo de conhecer a cantora Ivete Sangalo. Ok. Tirulipa estava em turnê na Bahia com o circo e, aparentemente, reatou os laços com o tio. De acordo com a descrição do vídeo, é o maior sonho de Léo conhecer Veveta, “fenômeno que deus colocou no mundo para nos dar felicidade”, ele desabafa.
Não sei se ele continua no trabalho com videokê. Pela felicidade dele, espero que não. O Karaokê Belas Artes bombava como sempre até 2020, com ou sem Léo, e continua assim após a pandemia. Se pudesse, eu voltaria no tempo e cantaria músicas da Ivete Sangalo para fazer a alegria do homem que fazia do inferno pessoal um ofício para divertir jovens aos fins de semana.
Laura Reif é jornalista.
Leitura interessante
Assina aí o Isto Não É Um Telegrama. A Mariana Moro une textos que dão a sensação de ler o nosso próprio diário. O texto sobre corpo me fez pensar muito.
Recomendo a Ponto Nemo, do Arthur Marchetto. Um texto inteligente e com uma curiosidade inquieta. Em especial, a série de texto sobre fungos.
Frase desinteressante
“Um conhecido teve o braço triturado por um bugio"
(Vendedor de orquídeas, 2022)
Link desinteressante
Sabe aquele meme dos dois caras em um ônibus, um triste e outro feliz? O rochedo por onde passa o ônibus existe. Fica em Venda Nova do Imigrante, no Espírito Santo.
Leia o arquivo Desinteressante. Na semana passada, a primeira parte do mestre das cobras.
“O Desinteressante tem as melhores histórias que eu nunca li”
Criminoso um texto tão sensacional não ter nenhum comentário. Bom, agora tem um. Gostei muito :)