O mestre das cobras mais letais do Brasil: parte I
Há muitos anos, em uma sala com luzes baixas e paredes com mapas, fotografias e desenhos, um homem falou a seguinte frase: “Cobras não mordem. Cobras picam”. Ele disse pausadamente, sentado atrás de uma escrivaninha, vestido em um jaleco branco, como um médico. Os cabelos dele eram lisos e repartidos ao meio, ainda escuros na época, com uma barba recém aparada onde, aqui e ali, havia fiapos grisalhos. “O veneno das cobras age nas células”, continuou. A grama. Verde com o sol. Crianças. Um ônibus. Pássaros. Carros. “Toda cobra possui espécies e subespécies”. Tem cobras nas imagens dos livros ao redor dele e em um aquário a alguns metros de sua sala; há cobras em um jardim próximo e guardadas em potes de vidro, em gavetas, em tambores. Ele continua a falar. “A urina escurece após a picada de uma cascavel. É o início da falência renal”, acrescenta. O ouvinte o observa e pergunta: “Dói muito a mordida?”, e observa atentamente a resposta do professor. “As cobras não mordem. Elas picam”.
Ele se chama Giuseppe Puorto e é herpetólogo, um especialista em cobras. Na altura do seu peito há um pequeno bordado em letras verdes onde se lê o nome e se vê uma serpente enrolada em um brasão. Em um pote de vidro à sua frente está mais uma cobra, mais uma ao lado de papéis, réguas e cartografias. Dentro do recipiente há o corpo de uma cascavel preservada no álcool. O líquido se move e a cabeça dela move junto. As presas laterais estão à mostra e formam o que um humano chama de: sorriso. Em breve, o corpo será parte do acervo do Instituto Butantan - estará condenado a permanecer neste estado nos arquivos da instituição.
O Butantan é famoso pela produção da vacina contra a Covid-19, mas é um ambiente fantástico muito antes do coronavirus. Parece com uma fábrica de super-heróis de histórias em quadrinhos com cientistas prestes a ganharem poderes de seres improváveis. Homens e mulheres andam uniformizados e criam antídotos, pastas, cremes com veneno extraído das vítimas da dedetização dos prédios da metrópole: aranhas, escorpiões, sapos e cobras. O instituto fica em uma área apartada da cidade, com árvores e ruazinhas. Há prédios com rococós e tipografia romana junto a edifícios modernistas, com concreto e musgos à mostra, há prédios com cara-de-nada com laboratórios onde lentes são usadas para observar a sociedade de aparência onírica coordenada pelas leis da vida microscópica.
Os corredores de alguns prédios realmente se parecem com os corredores de prédios centenários: longos, com pé-direito alto, extremamente silenciosos. O chão encerado reflete as lâmpadas do teto. Há portas com entradas limitadas a leigos e onde a temperatura é traduzida por números formados por traços coloridos em pequenas telas acima das fechaduras. Um serpentário pode ser visitado e, com sorte, se pode ver as cobras, ou ao menos as peles deixadas para trás, nas rochas de um fosso. O Butantan tem um hospital para vítimas de animais peçonhentos chamado Vital Brasil, o criador do instituto que andou pelo estado paulista em uma missão quase messiânica para salvar homens, crianças e animais do bote das cobras.
Há mais de trinta anos, Giuseppe usa as serpentes deste local para pesquisas científicas e educação de crianças, adolescentes e adultos que as encontram escondidas em fogões, piscinas, ou estiradas sobre telhas, camufladas entre meias do guarda-roupa (ou enquanto você segura o celular). Cadeira. Dedos. Olhos. As moléculas do veneno das cobras criam antídotos, remédios, cremes. Resolvem problemas arteriais e de coagulação. As possibilidades estão longe de serem completamente desvendados.
Os herpetólogos usam fumaça para atordoar as serpentes e um gancho para imobilizar a cabeça e evitar as presas. Nem toda cobra se defende com toxinas. A sucuri, por exemplo, enrolam e apertam as vítimas até sufocá-las, o que lhe permite comer jacarés e bois. Há também as cobras que fingem por sobrevivência: as falsas-cobras-corais que, diferentemente das verdadeiras corais, não têm veneno. Quem vai tentar a sorte?
Com o tempo, Giuseppe consegue ler os pensamentos das serpentes. Ele sabe quando estão agitadas, calmas, ofendidas, em gestação ou na digestão de ratos e aves, como um cachorro ou um gato que esgueira nos cantos de uma casa humana. Quase sempre, ele diz ao ouvinte, as cobras têm medo da gente.
Na Mitologia Grega, Hera enviou Píton para perseguir um dos seus desafetos, uma grávida - a cobra é morta por Apolo. Na Bíblia, uma cobra oferece o fruto proibido para Eva e inaugura o mal da humanidade. No Médio Amazonas, os Sateré-Mawé, a Mãe Cobra-Grande puxa todos os seres para debaixo da terra - é como a morte em si, talvez menos maléfica do que no ocidente mas ainda inevitável. Entre os nórdicos da Idade Média, a serpente Jormungand envolve o planeta e é morta por Thor, que também morre com o Ragnarok, a morte dos deuses. Dedos. Carros. Uma caixa. Em Harry Potter, uma cobra é capanga e amuleto do racista Lorde Voldemort. As serpentes são retratadas com características humanas - poderosas, destemidas, mentirosas, individualistas, falantes - e talvez por isso eleitas rivais perigosas para os homens.
Agora Giuseppe caminha por um corredor branco com salas enormes, refrigeradas. Gavetas com inúmeras espécies: um ossuário. Cabeças lhe observam. São alunos, funcionários, estudantes, biólogos. Agora Giuseppe está em uma sala de aula: idosas o observam e de uma caixa ele tira uma cobra gigantesca. Agora Giuseppe está com a serpente do frasco, aquela que sorri, mas agora ela está fora do frasco. Agora ele retira uma cobra de uma caixa para mostrar a um ouvinte: ela sai atordoada com a fumaça. O grupo de idosas aplaude a cobra. O ouvinte se assusta. Os alunos analisam as escamas que, de perto, muito perto, se parecem com pequeníssimas penas coloridas de um pássaro.
Em outro dia, muitos anos depois, vestido com o mesmo jaleco branco com inscrições verdes e uma máscara cirúrgica, Giuseppe caminha pelas vias com gramados e esculturas do Butantan. Vai receber uma encomenda. De dentro de um veículo retira uma caixa com furos - os cabelos permanecem iguais aos de anos atrás: repartidos, levemente caídos na testa; os trejeitos são os mesmos, mas era um dia diferente. Dia diferente.
(Continua…)
Leitura interessante
Assina aí o A Diletante. A Ariela K. tem uma escrita apaixonada e profunda. Faz bem ficar dentro da cabeça dela.
Recomendo a Elpênor em queda do escritor André de Leones. A graça é nunca saber sobre qual livro, ensaio ou filme ele vai escrever. Tem um mau humor legal.
Frase desinteressante
“O Sì Señor é tipo um Outback, mas criado no México"
(Anônimo na rua, por volta de 2018)
Link desinteressante
Um cara criou um Google reverso. O Marginalia só busca sites sem hiperlinks, anúncios e tudo que o Google considera como "bom conteúdo". PS: muitos sites dos anos 90.
Leia o arquivo Desinteressante. Na semana passada, a motorista mais rápida.
“O Desinteressante tem as melhores histórias que eu nunca li”
Sensacional! Me apaixono mais pelas histórias a cada semana