#1: Uma carta de Birmingham, na Inglaterra, para você.
Toda cidade pequena é diferente, toda cidade grande é parecida. A maioria passa por um auge e um declínio; o aumento da população; o fim e o começo da indústria; se tornam violentas; das desigualdades nascem a arte, o crime organizado, as associações de moradores, as construtoras, os bancos, os mendigos, as carruagens, a polícia, a desconfiança, a má fama; os rios viram esgotos. Em algum momento há um platô e os problemas do passado são resolvidos ou substituídos de maneira torta e, com o benefício do tempo, viram um fato da história. É nesta etapa que os esgotos são mais ou menos limpos - é quando os turistas desfrutam dos monumentos, bares e ruas sem saber o lance de escadas vencido. É um erro acreditar que as cidades são pacificadas em algum momento. Necessita-se apenas afrouxar um parafuso - a crise, a doença, os incêndios, as revoluções, os golpes, a guerra, os terremotos - e todas as etapas de destruição e construção se realinham. Se são mais calmas e ordenadas em um período é por terem empurrado os problemas para outra cidade, outro país, até cada assunto mal resolvido voltar para casa como um pássaro condenado a repetir coordenadas.
Birmingham, na Inglaterra, é uma cidade em obras e em algum ponto desse caminho.
Há prédios novos no lugar dos antigos. Funcionários em coletes esverdeados são acompanhados por engenheiros com papéis nas mãos que andam e eventualmente tropeçam em canteiros segregados por grades, tapumes e pedras. No final do ano, a cidade será a sede dos jogos da Commonwealth, uma Olimpíada entre países com relações comerciais com a Coroa britânica - a maioria ex-colônia do império inglês. Os trilhos dos bondes são novos e deve haver um número maior de prédios espelhados para o mercado financeiro, como em Londres. Quarteirões de novos edifícios foram comprados por investidores para servir como hospedagem e, ao andar pelas ruas, se vê que não são os efeitos dos jogos apenas.
Birmingham é uma cidade universitária. Chineses vendem galinhas submersas em óleo fervente para compatriotas que andam em bando com sorrisos abafados ou vestidos em Adidas da cabeça aos pés, com chapéu de pescador, óculos escuros e um passo duro e confiante. Há também ingleses de Liverpool, Leeds, Manchester, Reading, que bebem shots ou jarras com energético e canudos coloridos até caírem com um vape colorido entre os dedos (isso é uma segunda-feira). “Quando eu pedir para vocês levantarem o braço”, diz uma drag queen para uma plateia com menos de dez pessoas, “vocês levantam e gritam UH-UH”. Um rapaz bissexual puxa conversa com uma estranha durante a música. "Nós, bissexuais, nos vestimos muito melhor”, ele diz.
Birmingham é também uma cidade operária e as duas realidades - a de jovens universitários e a de jovens imigrantes operários - convivem de maneira desinteressada. “Você acha que essa mulher é mulher?”. A pergunta transfóbica é feita por um búlgaro operário que, de alguma maneira espetacular, chegou até ali sem entender que é um bar LGBT+ (a drag, os casais de homens de mãos dadas, as transexuais não lhe provocaram qualquer suspeita). Outro operário gentil, com calças apertadas e um boné, diz conhecer algo de português por trabalhar com portugueses em obras da cidade, mas não diz de onde é. Ao lado dele, um casal aparentemente hétero celebra o primeiro encontro (morno). Do outro, ume menine não-binarie, vestide de preto e com um par de óculos grandes e escuros, grita uma pergunta no ouvido de uma menina cisgênero bissexual: “Você está em uma relação poliamorosa?”. Atrás do balcão, uma bartender com boné e cabelo curto prepara um Cosmopolitan, que pinga para fora do copo levemente, colorido e açucarado. Sozinho, um senhor com bigode tingido de preto, vestido em couro brilhante e com o peito peludo exposto, dança a música Rain On Me da Lady Gaga a 5 centímetros da caixa de som. Há bandeiras LGBT em toda a cidade - diferente de Londres - e no bairro com um nome conveniente: Gay Village.
No passado, Birmingham prosperou com a Revolução Industrial e abasteceu o país e as colônias com uma indústria têxtil avançada e com mão-de-obra qualificada. A importância econômica e a força política da cidade eram semelhantes, senão maiores, às de Londres. Os políticos dali estenderam o direito ao voto para a classe trabalhadora e mudaram a percepção sobre a divisão do trabalho, no qual homens brancos deveriam ter certa dignidade na proximidade com a máquina. Os pobres e a classe média mais escolarizada se misturaram no processo enquanto os bancos prosperavam como em nenhum lugar da Inglaterra. A desigualdade econômica aumentou. Assim surgiram gangues que saqueavam, roubavam e tentavam dominar o território de Birmingham, mas com certo respeito à classe trabalhadora. Não à toa os Peaky Blinders e os Birmingham Boys eram violentos, mas se mantinham elegantes: vestidos com boinas, roupas de algodão, as calças de alfaiataria e certo conhecimento político prático e teórico. Com o tempo, perderam a importância e viraram criminosos, assassinos e ladrões caricatos, como os piratas.
Pode-se dizer que a sensualidade das gangues persiste nas coisas e na gente: nas pilastras de trem grafitadas e decadentes, na moda, nas cores vibrantes de Chinatown e Digbeth e no pouco do corpo à mostra sob o frio da primavera. Ou, pelo menos, o máximo de sensualidade possível para os britânicos. Parece uma cidade muito mais espontânea e livre do que a capital. (Há um tipo de mulher branca e alaranjada com bronzeadores artificiais que faz muito sucesso. Nunca vi igual no Brasil. Quanto mais laranja, mais alto na hierarquia das aparências).
Na Segunda Guerra, Birmingham foi duramente bombardeada pelo Eixo e não se reergueu como outras metrópoles européias. A partir dos anos 70, repetiu o ciclo do fracasso e tornou-se mais pobre, novamente mais violenta e desigual, dependente do pouco de indústria restante que migrava para o País de Gales e reféns da produção de carros. O heavy metal foi inventado naquela época e as batidas iniciais de Iron Man me soam como os de uma indústria, cada vez mais decadente e agressiva (existe uma pequena ponte chamada Black Sabbath em Broad Street, acima do canal Old Line).
Nos anos 80, os canais, que antes trouxeram bens na Era Vitoriana, perdiam a importância e a exuberância. Os londrinos taxaram Birmingham como uma cidade ignorante, pobre e o sotaque exagerado da região era visto como uma piada. É comum que a segunda maior cidade do Reino Unido seja interpretada como feia, viciada e a um passo do desespero.
Uma fotografia trevosa minha na ponte Black Sabbath
Nos anos 90, obras públicas organizaram a área industrial e a cidade foi, assim, revivendo as conferências científicas da burguesia, aumentando o comércio e agrupando os universitários e operários levemente desregrados para formar os dias de hoje. A reforma da biblioteca de Birmingham, um prédio lindo, foi a estrela daqueles dias dos anos 2000. A instituição tem um dos maiores acervos públicos da Europa e milhares de obras de Shakespeare, autor nascido ali próximo.
As casinhas de tijolinho começaram a desaparecer, mas ainda há um pub de 1300 frequentado pelos Peaky Blinders. Ainda há a velha estação Moor Street e a palaciana New Street, com trens que levam para Londres, Manchester ou Leeds. Os ônibus levam até 4 horas até Londres e cruzam campos de tulipas amarelas que parecem uma caneta piloto e dão cor para o interior sem graça da Inglaterra. Andando aos tropeços pelo canto da cidade, um homem em situação de rua implora por centavos. Seus pés aparentam queimados pelo chão gelado e os cabelos loiros estão grossos de sujeira.
O cheiro dos restaurantes na Chinatown parece ter cores: um cheiro vermelho ou acinzentado. São como potes de pimenta organizados em diferentes tonalidades e picância. No shopping Bull Ring Center o cheiro parece ter a cor azul, como um tupperware de plástico. A todo instante se escuta um bip-bip-bip vindo de máquinas instaladas no McDonald's, KFC, Subway, Chipotle, em substituição aos humanos. No canal, há o cheiro de rosas de um cupcake servido por uma mulher baixíssima, orgulhosa dos bolinhos em cores amarelas, vermelhas e cristalizados como algodão-doce.
Quando?, eu me pergunto. Quando será que tudo pode dar errado para Birmingham? Deu algo certo, de verdade? Quando tudo deu errado para São Paulo, de onde eu sou? Me questiono o que mantém seres-humanos a partilhar seu desalinho - o moral, o físico - com milhares de estranhos à beira dos recomeços.
A princípio não quis fazer um relato de viagem, mas a visita a Birmingham me fez perceber contrastes da causa invencível das cidades. Tomei o trem de volta para Londres. A viagem é confortável e cara. Já era noite e eu não conseguia ver a paisagem, mas senti que tudo segue em frente.
Você pode me responder por e-mail ou deixar um comentário. Eu acho fofo, leio e respondo. Na próxima edição: Londres.
Leitura interessante
Assine aí o Giro Latino. Nunca me senti tão bem informado sobre a América Latina. São edições semanais. Tenho especial apreço pela cobertura da América Central, uma região tão esquecida.
Me divirto muito com o À toa pelo mundo. Não consigo imaginar o pânico e a aventura da Lívia Aguiar em chegar países com idiomas tão distantes.
Frase desinteressante
"Você é do Brasil? Eu tenho um amigo que mora em Portugal. Vocês se conhecem?"
(Anônimo em Birmingham, abril de 2022)
Link desinteressante
Durante 15 dias, Jimmie Nicol foi um dos Beatles. Ringo estava resfriado.