A história de quando comecei academia e descobri a alma humana
Eu vou completar 30 anos e decidi começar a fazer academia. Não fui o primeiro, nem o último a fazer isso, mas essa ação me fez considerar todo o destino da espécie humana.
Um dia, eu subo na esteira e assisto a um jornal da Record enquanto escuto as músicas da Malhação 2004 no fone de ouvido (Blink 182 - I Miss You). No outro dia, faço musculação. Eu, Marcos, na musculação. O que eu acho que vou ser um dia? O Arnold Schwarzenegger do Sacomã?
E é na musculação que faço o meu corpo: faço perna, faço braço, faço abdômen, faço bíceps e faço músculos que nem sabia que existiam. Antes de tudo isso, eu não tinha esses membros e músculos comigo. Eles são feitos ali, na hora. Antes da SmartFit eu era como a Terra antes de Deus: sem forma e vazio. Eu era menos um homem; era mais uma ideia de homem.
Os meus colegas masculinos de academia, por outro lado, já são enormes. Eles venceram. Percebo que quanto mais músculos eles têm, menos pêlos corporais. Nem uma barbinha é deixada para contar história. Os caras incham e ficam igual um peito de frango. O mais curioso é que, mesmo estando padrões mais elevados da escultura em mármore, muitos não são atraentes.
Me abstenho de comentar sobre as mulheres, pois sou aliado (cof, cof), mas percebi que elas recebem mais ajuda dos funcionários do que os homens. Alguns instrutores quase carregam pesos por elas, na moral.
Para chamar um desses funcionários, é só apertar um botãozinho e pedir socorro, como na emergência de um hospital. Voi lá, eles aparecem na sua frente e a primeira coisa que dizem é que você está fazendo o movimento errado.
É bom se acostumar: você está sempre errado. Se eu levanto peso até a altura do peito, o movimento está errado. O movimento de perna? Flexionou pouco. Costas? Precisa inclinar mais. Tem que fazer o movimento da alavanca, ou não hipertrofia. Até se corro na esteira, estou correndo errado. Porra, eu desaprendi a correr? Se eu falto na academia, estou errado. A consequência por essa ausência vai ser ansiedade, que vai me matar sem as minhas endorfinas diárias (essa parte é verdade).
Para mim, o aparelho mais apavorante é o de subir escadas. Quem gosta de subir escadas? Uma escada infinita, ainda por cima? Veja, a bicicleta e a esteira têm um charme da infância. A escada, não. Escadas são tão ruins que inventaram o elevador, um negócio onde você CAI numa cordinha, tipo um bungee jump, só para evitar o parto de subí-las. E as pessoas ainda pagam pra isso.
Todos esses elementos moldam a academia em um ambiente impessoal, que lembra um shopping Iguatemi. Onde foram parar as ginásios do Rocky Balboa? Onde estão aquelas carnes congeladas para dar soco? Onde estão os amigos anabolizados? Os banheiros das academias parecem vestiários do Coliseu, onde todos se pesam e trocam de roupa sem olhar um pro outro, como se estivessem prestes a morrer.
Um ensaio muito bom do escritor Mark Greif diz que, na Grécia Antiga, o local para ficar bombado era em casa. Se exercitar era equivalente a comer, dormir, mijar, cagar, transar, se masturbar -- todas atividades feitas na intimidade, ou pelo menos em ambientes mais privados.
Essa divisão estabelecia o que era público e privado: se na privacidade os atos ligados ao alinhamento físico estavam em dia, se pressupunha capacidade para prover alimento, cuidar da família e, ainda, ficar grande. Logo, se demonstrava aptidão para o ambiente público. O corpo era uma demonstração de um espírito elevado, semelhante a um Deus, capaz de assumir responsabilidades igualmente públicas como o corpo e tão complexas quanto os músculos.
Nos ginásios gregos, onde se colocava o corpo para jogo, também havia um espaço de discussão política e de onde, veja só, se deu a filosofia ociental. Imagina alguém saindo da BlueFit pronto para escrever umas paradas tipo “O banquete”. Não à toa, nesses ambientes circulavam uns caras fracos, tipo Platão.
A mesma correspondência intelectualizada ainda está nos termos como Academia de Letras ou Academia de Artes, se você parar para pensar. Um ambiente comum, geralmente cheio de idosos, para o exercício e aprimoramento de uma aptidão humana (ou um clube).
Os termos mudaram. Hoje, as academias são ambientes compartilhados onde não há uma competição explícita, nem discussões sobre o espírito, nem um objetivo profundo, nem intimidade. É verdade que buscam o aprimoramento, mas dessa vez a muscular, a construção de fibra.
O maior empecilho desse ambiente são as sequências numéricas. Tem número em todo santo canto, tipo uma bolsa de valores. Os números de velocidade e inclinação da esteira, os números da balança, do relógio na parede, dos dados do smartwatch, dos pesos livres e das cargas.
O número mais temido é, na verdade, é aquele que define nossa idade. Todos queremos rejuvenescer, mover o relógio para trás. Todos acreditamos que somos ainda jovens, até perder o fôlego ao transar, ao atravessar a rua, e sentirmos que é preciso fazer alguma coisa contra nosso infeliz destino.
A ideia dos exercícios é, então, retornar aos dias de glória e, por isso, nos submetemos a essas máquinas com ares industriais. Elas nos enchem, nos endurecem, nos enrijecem até aumentar nossa resistência e durabilidade.
De alguma forma, elas revertem o mito de Titono, a quem Zeus concedeu vida eterna na Mitologia Grega. A história é a seguinte: a deusa Eos se apaixona pelo Titono, um cara gato. Para presenteá-lo, pede a Zeus que dê ao amado vida eterna para viverem eternamente. Sacana e sem muito o que fazer, ele atende ao pedido. Mas veja: ele dá vida eterna, não juventude eterna. O coitado do Titono vai murchando, perdendo massa muscular, se doendo, implorando para morrer para sempre.
Se tivesse uma academia com catraca no Olimpo, nada disso teria acontecido. Hoje, nós sabemos que vamos morrer e que a idade é inevitável, mas queremos prolongar e garantir os benefícios da juventude até onde der.
A impessoalidade e a individualidade nas academias atuais não é despercebida. Em 2017, fiz uma reportagem sobre CrossFit, um exercício de alta intensidade praticado nos boxes sem máquinas e com espírito mais coletivo. Era uma resposta a essa. Mas, como nas academias tradicionais, o alvo continuava ser ágil, rígido ou musculoso -- sabe-se lá para quê. O intuito é o mesmo: treinar.
O exercício deixou de ser chamado de malhação ou se exercitar. Agora é treinar. O troço virou coisa de atleta! As metas do treino são individuais, mas buscam a melhora na aparência física para quem não é atleta. A missão é ficar gostoso. Nem venha me dizer o contrário, isso é um texto de humor.
Em tese, treinar para ficar gostoso, se tornar um objeto de desejo, seria uma atividade quase contracultural. Pensa: somos obrigados ao sedentarismo na maioria dos nossos empregos cada vez mais informatizados, pejotizados e feitos na cadeira do home office. Em breve, nem os dedos vamos mexer. Em breve, nem emprego vamos ter. Logo, o exercício quebraria essa dinâmica, mas tem um problema: as academias são empresas bilionárias com propaganda em massa.
Além da saúde física, a indústria também se atrelou à saúde mental. Então, você faz academia para ter uma saúde mental melhor. Foi uma puta sacada. Afinal, todo mundo que eu conheço está maluco. A gente sobreviveu a uma tragédia histórica - a pandemia -, depois ficamos em casa trancado por dois anos e, após a vacina, voltamos a trabalhos sem significado. Moramos sozinhos em apartamentos cada vez menores, com lavanderia no térreo.
É duro dizer, mas sinto que ir na academia se tornou o ápice da vida diária de várias pessoas. Por isso, você precisa aguentar um monte de stories. “Tá pago”, “Vim buscar o balde que eu chutei”, “De domingo deveria valer mais”, “Vim tarde mas o importante é que eu vim”. É uma penitência danada. O sacrifício na academia é valorizado, como em alguma antiga civilização nórdica.
No story seguinte, você vai ser impactado com um anúncio da SmartFit para aumentar a sua culpa - e a culpa é a alma do negócio. (A SmartFit, por exemplo, triplicou o lucro entre 2022 e 2023, com receitas de R$ 1,8 bilhão). Se você não está feliz, talvez a culpa seja sua por ter ficado em casa revendo Sex And The City em vez de fazer uma série de exercícios de perna.
Quando achei que estava indo bem na academia, todo mundo me passou a recomendar creatina, um troço com nome de produto para cabelo. Eu estava novamente meio errado, mas com a ajuda desse elemento químico terei uma ajuda extra para os meus planos escusos.
Tomar anabolizantes ainda é errado. Um aviso no banheiro da academia faz o alerta: usar bomba te deixa calvo, com tumores no fígado, com acne e crescimento exagerado de pelos. Quer dizer, sem bomba você já pode ter tudo isso. É a pior campanha que eu já vi! Passei a reparar nos adultos com acne na academia e também fiquei um pouco assustado com a situação.
Por incrível que pareça, depois de tudo isso, estou gostando de ir na academia.
Gosto de ter uma atividade física na minha rotina. Me lembra os tempos de escola, quando eu saía da aula de matemática para jogar futebol e conseguia esquecer um pouco das obrigações mais chatas da vida. Meu fôlego melhorou. Também me sinto mais confiante na luta contra os padrões de beleza ao me encaixar cada vez mais nele. Você venceu, Instagram.
Daqui um ano, você vai ler esse texto e eu não terei mais 30 anos, mas 29. Eu vou correr na esteira até voltar aos meus 28, e assim por diante. Quero chegar até meus 15, quando eu tinha acne, crescimento exagerado de pelos, início de calvície e, com certeza, alguma questão no fígado.
Lembrando que esse texto ainda é parte da primeira temporada de Desinteressante. A partir desse semestre, as coisas vão mudar por aqui.
Excelente texto Marcos! Estou com 35 e continuando discutindo comigo mesmo se devo ir para academia rsrs
rindo. me senti representada em muitas partes. estou na luta para VOLTAR para academia no momento. agora... uma curiosidade: quem são as pessoas dessa imagem fotográfica? eu achei uma vaibe maravilhosa.