A história de quando fui demitido e descobri que isso acontece
Eu nunca havia sido demitido. Nas empresas onde trabalhei, sobrevivi a umas cinco demissões em massa, mas sabia que inevitavelmente uma hora aconteceria comigo, assim como a morte ou HPV.
Tudo aconteceu em uma terça-feira. Voltei do cigarro após o almoço, sentei na minha cadeira, coloquei os fones e, de repente, senti. Eu senti. Ele estava ali: o toque no ombro.
Não era uma cena inédita: já vi outras vítimas desse fenômeno corporativo do toquezinho no ombro. Se um chefe encosta no seu ombro e te chama no particular, pode ficar tranquilo: não vai ser um aumento.
“Podemos conversar?”, ouvi. Não era exatamente uma pergunta, até porque eu não tinha nada para conversar. Além do mais, eu tinha acabado de almoçar e demoro para voltar ao tranco durante a digestão.
Levantei, então, e caminhei a uma sala sem decoração, coloquei um copo de café à minha frente, sentei de frente com a chefia e aguardei mais informações, como em uma investigação em andamento do Law & Order.
“Nós estamos passando por uma reestruturação e precisamos fazer alguns cortes”.
Reestruturação. Por que, em nome de Deus, toda empresa se reestrutura? Tá ruim como tá? Por que não imitam locais com estabilidade, daqueles que só passam por reestruturação a cada 3 séculos, tipo os Correios ou a Igreja Católica?
Mas demissões, por sorte, são sempre rápidas. Em 30 segundos você já está na calçada, pensando no financiamento do carro, nas injustiças do capitalismo e, principalmente, em beber às três da tarde.
As contratações, por outro lado, são como um teste do Show do Milhão com provas, entrevistas, diploma, sorteios, condições, certificado de reservista, título de eleitor, carteira de motorista, de trabalho, o nome da mãe.
Por que o processo de demissão não envolve um processo seletivo também? Uma prova de conhecimentos gerais, sei lá, para ver se eu sei o ano que foi celebrada a Constituição e isso me manter no cargo. Mas, não. É hora de voltar logo para casa e parcelar o rotativo.
Não à toa, até hoje ninguém soube resolver esse ritual constrangedor das demissões. A maioria dos chefes parece sem jeito para dizer como vai terminar o relacionamento (“Não é você, sou eu” funcionaria). A terminologia nunca encaixa, o que é compreensível. Um elo monogâmico foi rompido e, dali em diante, você se tornou um profissional não-mono contra a própria vontade.
Até a Revolução Industrial, era comum o trabalhador ir de um lado para o outro em busca de trabalho, com uma trouxinha sobre os ombros e uma marmita meio gelada. Com a instauração das fábricas, ele passou a ter um lugar fixo para bater ponto todos os dias.
Ali surgiu o termo “sacked out”, por volta de 1887. Significava colocar as coisas no saco e voltar à vida de freelancer. Os americanos adotaram o “fired” no início dos anos 1900, como atirar o proletário com uma escopeta para bem longe. Os dinamarqueses, com estado de bem-estar social, usam “fyred”, que significa se livrar de um trampo e aproveitar a vida por aí. É tudo uma questão semântica.
Os latinos são sempre mais dramáticos: demitir vem de demitto. Ou abandonar, deixar ir, largar de mão. Só que o tempo passou e demissão se tornou um termo meio pesado para o setor de RH.
Hoje, a gente lê no LinkedIn palavras com ares eletrônicos, como desligamento, como se fôssemos um microondas. As demissões coletivas viraram cortes, as mudanças internas que geram demissões viraram reorganização, reestruturação. Há também os encerramentos de ciclo, uma coisa meio budista, meio hormonal.
As demissões são tão inerentes ao capitalismo que criou-se um certo fetiche sobre essa situação tão delicada. Também é fácil entender: o vínculo empregatício tem o ar do bom e velho duelo entre formiga (trabalhador) e gigante (empresa). Há uma tensão para corresponder expectativas, ser agradável, bater metas e, assim, se livrar do Paredão na terça-feira. É um reality show pronto.
Vale lembrar, os Estados Unidos da América elegeu um cara famoso com “O Aprendiz”, um programa onde Trump demitia coitados que não entregaram o job como ele gostaria. No Brasil, João Doria virou governador de São Paulo à frente do mesmo programa (já o Roberto Justus virou cantor).
Não é o meu caso, mas os burnouts cada vez mais frequentes se encaixam nesse roteiro de competitividade entre a punição (demissão) e a recompensa (pagar as próprias contas e as do terapeuta).
Nossas leis trabalhistas brasileiras compreendem que o trabalhador tem mais a perder nesse término. Por conta de Getúlio Vargas, além da censura no Estado Novo, temos historicamente a CLT, um parachoque nessas horas.
E eu sempre fui CLT. Não sei como aconteceu. Meus amigos me perguntaram: “Marcos, como você ainda é CLT?”, e eu também não sabia. Um dia me ofereceram, tipo um cigarro, e quando vi estava na minha vida.
Consequentemente, com o passar dos anos, escuto menos o termo “desempregado”. Todos agora são freelancer, como na era pré-industrial, enquanto eu permanecia firme e forte com minha CTPS.
Um pouco desconcertado, saí da sala de reunião, demitido, telefonei para a namorada, chamei colegas queridos, informei o diagnóstico do paciente (eu) e desci para comprar uma Heineken no bar da frente.
Depois, encontrei meus dois talentosíssimos colegas Marie Declercq e Adriano Wilkson. Todos nós na fila do seguro-desemprego. A Marie, inclusive, também sentiu o toque no ombro, mas estava com os índices glicêmicos preparados para a situação.
“No momento em que o gestor da minha editoria tocou no meu ombro, eu já sabia. O problema é que eu estava com um monte de Skittles sabor Wild Berries na boca e eu tive que pedir alguns segundos antes da minha demissão para mastigar e engolir as balinhas”.
Até então, eu pensava só no meu aluguel. Eu sou exclusivamente proprietário do meu aluguel e isso ninguém tira de mim. Um outro colega, também demitido, gentilmente tentou me acalmar.
“Essas coisas acontecem. E pode ser bom! Só é ruim que a gente fica sem convênio médico, férias, desconto na academia, 13º”, disse. Meu Deus, vão cortar minha SmartFit? Não tem um período de carência?
Avisei minha mãe por último. Ela tem a impressionante habilidade de manter a calma e me disse uma frase que nunca vou esquecer: “você só não é demitido se for sócio ou já estiver desempregado”. Uma tia muito querida e, sem maldade, também deu seu palpite: "Calma, Marcos. Pelo menos você não tem filhos, carro, financiamento de imóvel". Obrigado!
De fato, não parece o fim do mundo como havia pensado. As calotas continuam derretendo, o tempo continua a agir sobre minhas células, eu ainda preciso tomar creatina para honrar meu pacote promocional da SmartFit (R$ 9,90 no primeiro mês) e a procurar trabalhos com minha trouxinha no ombro.
Recebi um carinho inesperado sobre meu trabalho como repórter e isso me deixou mais tranquilo. Cheguei em casa, vesti meu All-Star e percebi que deveria ter evitado uma blusinha da Shein comprada na semana anterior aos fatos que se desenrolaram. (Será que eles têm vaga?). Abri meu e-mail para ver o valor das roupas e, para minha surpresa, lá estava a cobrança do aluguel. Ele é meu, só meu, e ninguém me tira.
Oi, Marcos. Eu seguia sua newsletter sem saber que trabalhava no mesmo andar que você e te via pela redação sem saber que você fazia a newsletter que eu lia. Sinto muito, seu trabalho é excelente. Desejo que algo novo te encontre logo e que seja leve. Um abraço.
Hahahaha marcos. Meu clt durou 2 anos. Agora guardo como relíquia. Você citou benefícios aí que achei que eram lendas do passado pra jornalistas. Pelo menos vai ganhar uma grana na demissão. Eu, um dia sendo demitida do meu pj-com-obrigações-de-clt, saio com uma mão na frente e outra atrás. Ótimo texto, como sempre. Boa sorte!