A história de quando notei que o mundo meio que vai acabar em breve
Eu e minha namorada saíamos de uma festa, às 2 da manhã, quando começamos a ouvir o canto de um sabiá-laranjeira na copa de uma árvore próxima. “Que estranho”, comentei, “eu só escutava ele pelas manhãs”. Ela, então, me contou que o barulho da cidade o obrigou a cantar mais cedo e, graças àquele passarinho, passamos a semana em longas conversas sobre o fim do mundo. Conversa leve.
Nosso diálogo, apesar da poluição sonora, foi escutado ao menos pelo destino. Alguns dias depois do episódio, o sol nasceu vermelho no horizonte. Bonito, mas poluído. São Paulo amanheceu com a pior qualidade do ar em todo o planeta Terra. Passamos a viver na suíte privilegiada do apocalipse, com fácil acesso às catacumbas do Metrô.
Eu, minha namorada, meus colegas paulistanos. Nós fomos obrigados a manter o cronograma dos hábitos e obrigações. Acordamos, entramos nos ônibus e nos carros, nos preparamos para almoçar. Comemos Trento maracujá (só Deus e um juiz de 1o instância podem me julgar), nos culpamos, tentamos emagrecer, atrasamos e pagamos contas. Gestos instintivos, mas não silenciosos.
Cada passo dessa nossa rotina emite barulho, cada veículo mais fumaça, cada pulmão mais sintomas de deterioração. Portanto, até ouvi-lo, eu estava preocupado e surdo demais para ouvir o canto do passarinho, o mesmo passarinho que, sem saber, me remetia às horas sagradas da vida.
Lembro de escutá-lo quando São Paulo ainda era uma cidade fria e com garoa, quando muitas coisas ainda eram desprovidas de nome para mim e, no caminho da escola, minha mãe tentava me descrever aquele mundo novo e anônimo. “Esse passarinho canta todo dia de manhã”, ela me disse. Dali em diante, todo dia de manhã era cantado por esse passarinho.
Meu avô colecionava passarinhos em gaiolas empilhadas na lavanderia. Durante o dia, os levava para passear em uma pracinha em Catanduva, quando mais jovem, e no conjunto habitacional do Sacomã, para onde se mudou para ficar mais próximo da minha mãe da velhice até morrer, aos 84 anos de idade.
O passeio parecia preenchê-lo de um orgulho mudo, como se os cantos fossem dele e substituíssem sua natureza enigmática e calada. À noite, ele os cobria com uma toalha que, empoleirados, se calavam e dormiam. Meu avô também dormia.
O sabiá das manhãs não obedecia a esse enredo do cárcere. Todas as manhãs, quase fim da madrugada, ele cantava livremente nas janelas da Cohab sem eu nunca tê-lo visto. Diferentemente do meu avô, passei, então, a colecionar das aves seus momentos de liberdade.
Lembro que ele cantava no início da minha adolescência, quando passei a dormir mais tarde do que na minha infância. Cantou, também, quando consegui uma bolsa para estudar na universidade. Cantou quando saí do Sacomã para viver no centro, onde minha família ainda chama de “a cidade.” Muitos anos depois, só reparei em seu canto vindo de uma frondosa árvore na rua Glete, quando minha namorada me informou sobre suas mudanças de horário.
A constatação da interferência do nosso mórbido jeito de viver nos demais seres vivos não era só minha, mas compartilhada pelo mundo. Temos sucursais sobre o assunto onde quer que haja humanos perambulando.
Uma população na Dinamarca, por exemplo, convivia com insetos de cores e dimensões variadas. Muitos engoliram vários deles na infância, quando andavam de bicicleta. Era um saco, mas eles já estavam ali há milhares de anos. Até sentirem que dava para pedalar numa boa, sem desviar de abelha, mosquito, besouro. O motivo, lógico, era a mudança climática.
Mas era preciso comprovar a alteração das coisas. Pesquisadores, então, formaram dois grupos, um mais velho, outro mais jovem, e fizeram a seguinte pergunta: “quais insetos você lembra na sua infância?”
Os mais velhos sabiam nomeá-los e interpretar o mundo antes e depois das alterações no clima. Eram muitos, os insetos, diziam. Para os mais jovens, não. A eles, os insetos nunca existiram como existiam antes.
Objetivamente, a análise indicava um processo de extinção quase imperceptível e em massa de espécies minúsculas. No campo mais filosófico, os mais jovens aceitaram a vida cada vez mais miserável e poluída que, pelo menos, os permitia fazer 3 km de bike na subida. Afinal, a vida sempre foi essa merda.
“A degradação ambiental aumenta a cada geração, mas cada uma delas entende como norma a degradação que percebe”, concluíram Peter H. Kahn e Batya Friedman, lá em 1995.
O diagnóstico foi chamado informalmente de “síndrome da mudança de referencial”. A biológica Loren McClenachan a testou nos Estados Unidos e separou fotos de pescadores da Flórida. Com o tempo, os peixes ficaram menores, mas os pescadores ganharam um troféu pela pesca. No passado, o mesmo peixinho ia ser descartado sem troféu, sem foto, esquecido.
Na revista 451 de setembro, Rebecca Solnit escreve um belo texto sobre como precisamos perceber essas mudanças não só como uma conclusão científica cheia de gráficos e mapas de calor, mas como a preservação de histórias nossas e alheias. “Toda crise é, em parte, uma crise de narrativa. Isso vale para tudo, inclusive para o caos climático. Vivemos rodeados de histórias que nos impedem de enxergar, acreditar ou agir em prol da mudança”, escreve Solnit.
A narrativa que nos foi imposta, concluí, foi a da ganância. A minha ambição em sair da periferia e revogar a minha classe exercia, ao mesmo tempo, a função de mais um parafuso na nossa engrenagem sistêmica em busca de conforto. Era a minha narrativa, a dos sonhos.
Fui, como todos, levado a deixar para lá a natureza primordial enquanto o mundo padecia e eu poderia tentar usufruir de belos automóveis (Uber X). Por isso, incluí novamente o sabiá neste jogo para voltar a me sensibilizar como no roteiro estranho que me sensibilizava a caminho da escola.
Na janela do apartamento onde moro, aos 30, passei a reparar se ele continuava a cantar. Mas não o ouvi. Pesquisei na internet e descobri que ele canta para tentar se reproduzir. Ele só quer amar, o último romântico dos litorais desse oceano Atlântico. Mas, semanas depois, nada. Um dia, depois do trabalho, sentei no sofá e, finalmente, escutei o meu sabiá-laranjeira. Não sei dizer se me emocionei.
Não era o mesmo da minha infância, da minha adolescência. Nem eu era o mesmo. Minhas referências haviam mudado. Mesmo assim, me senti apto a tirar uma fotografia sorridente ao lado dele, como um troféu de pesca. O sabiá-laranjeira me fez sentir que a narrativa climática, no fundo, não é plano de fundo dos meus cenários, mas a manutenção do mundo de curiosidades que me formou.
Também percebi que aceitei o silêncio do meu avô até sua morte sem questioná-lo propriamente de onde ele vinha, como se sentia, como era a vida na roça em Catanduva, Urupês, Novo Horizonte, ou o que ele pensava sobre as aves enjauladas como adorno. Não tenho uma pista sequer de quem foram meus bisavôs maternos, nem dos insetos coloridos e aflições que eles cruzaram na vida. Quando ele foi velado, no cemitério da Vila Formosa, não senti muita coisa. Tive solidariedade pela minha mãe, pelas minhas tias. Tomei o café que uma outra trouxe, ainda quente, em uma garrafa térmica de plástico. Nessa época, eu já nomeava o mundo suficientemente bem e, embora tivesse conquistado algumas de minhas fantasias, o desencanto da vida adulta começava a se proliferar e meus troféus de pesca pareciam menores. O tempo já não era o mesmo. Saía com uma blusa porque de manhã fazia frio, ao meio-dia se tornava escaldante, à noite poderia chover, na madrugada iria descobrir meus pés suados porque esquentou. Na televisão, um barranco desaba e soterra famílias inteiras. Uma enchente como a de Porto Alegre iria afundar os livros. Frio em Cuiabá, um oásis no Saara. Abelhas que somem. Que tipo de esperança o futuro pode nos reservar com sua nova imprevisibilidade? Como ter filhos e obrigá-los a respirar material particulado fino e fazê-los tentar se encantar com o amor, as paixões, os sabores, os animais, durante a perspectiva do óbito? Os gringos inventaram um termo para isso chamado “ansiedade climática”, que a princípio me pareceu conversa fiada da Greta Thumberg discursando para um monte de bilionários. Mas não é bem assim. A descrição do sintoma é a de uma ansiedade causada pelo cataclismo climático para a atual e futuras gerações - ou seja, uma aniquilação das nossas perspectivas de futuro. Não é só fim dos humanos, mas da nossa capacidade de acabar com a nossa preciosa história compartilhada. Sem essa partilha, jamais poderia descrever meu trajeto escolar. Uma criança futura será impedida de se agraciar com os enigmas dos nossos pais, avós e das nossas classes sociais, elementos que constituem nossa matéria diferenciada. Elas podem se habituar, se adaptar, a uma vida infrutífera que nós estamos bordando apressadamente. Mais ou menos como me habituei à degradação das memórias do meu avô e interpretei sua mudez como norma. Por isso escrevo agora, para manter registros de como o tempo nos carrega adiante enquanto continuamos pilhando tudo ao nosso redor sob o risco de ignorar que o sol nasceu vermelho para acordar o sabiá.
Gostei demais do texto, apesar de todos os pesares, e ele me trouxe à mente duas memórias pandêmicas:
1. Minha rua deserta tomada por pombas, o arrulho delas o único barulho que se ouvia.
2. Olhar para minha filha, então com 5 anos, brincando por Zoom com as amiguinhas, lendo livros por Zoom com a avó, comemorando seu aniversário por videochamada, e lamentar, de novo e de novo e de novo, o mundo para o qual escolhi trazer essa criança.
(Ah, os muitos passarinhos do lado de fora da minha janela também estão cantando cada vez mais cedo, e, se acordo por algum motivo, só com tampões de ouvido para voltar a dormir.)
Amei o texto ,só aumentou a melancolia ,mas amei rsrsrs