A história do "pó mágico" que contagiou garotos espertos demais
O pó. Assim as crianças chamavam o ingrediente guardado em embalagens quadriculadas, sempre nas cores primárias, cujo gosto armazenava o ócio e o conforto dos aromas dos almoços de domingo, a lembrança dos potes onde mães austeras guardavam as comidas preciosas e de onde exalava o cheiro dos grãos fervidos nas panelas brilhantes e antigas das avós. Os garotos escondiam o pó entre os lápis-de-cor sem pontas, entre as lapiseiras que fingiam serem canetas de grandes empresários do futebol, entre as borrachas gastas, os apontadores cegos e as canetas azuis, pretas, vermelhas, verdes - cuja tinta costumava transbordar e expandir-se como uma mancha de petróleo; o transportavam no fundo do bolso dos uniformes azuis de tactel, misturado a papéis de chicletes antigos e pegajosos, embolados a canudos de pirulito de coração retorcidos, aos clipes de papel inúteis, aos farelos de bolacha e entre o inventário extenso de itens obrigatórios que compõem um aluno do ensino fundamental mais ou menos funcional daqueles tempos. Era impreciso dizer o motivo de o pó ter se alastrado com tanto sucesso no paladar escolar. Não se falava abertamente sobre o assunto, inicialmente restrito à sociedade discreta dos cochichos, bilhetes, bancos vazios e cantos reclusos. Nos minutos que antecediam o alarme para o recreio, havia certa movimentação nas carteiras e mochilas dos que pertenciam àquele clube, mas eram gestos imperceptíveis aos excluídos e ignorantes a ele, o que dava aos garotos a autoridade dos deuses antigos para observar os mortais e também a destreza de sair e entrar em qualquer espaço sem ser notado, como os ninjas dos desenhos animados exibidos na televisão aos sábados, dias sempre gloriosos e ensolarados na infância, quando não havia escolas abertas, alarmes e professores autocratas para lhes infringir a necessidade de se preparar para os dias que pareciam abstrações distantes criadas pelos adultos.
Naquela época, a merenda era a única refeição do dia para dezenas de estudantes. Muitos eram orgulhosos para assumir ou distraídos para entender que o almoço era o motivo dos pais lhe obrigarem a irem para a escola todos os dias. A comida saía de panelas fumegantes e era servida em pratos azuis de plástico pelas mãos enrugadas, úmidas e com cheiro de alho das merendeiras, entidades que despachavam porções exatas de alimento em direção a centenas de dedos ensebados e finos de crianças estranhas. Os garotos as viam como seres punitivos, vigilantes, ressentidos, e também como um totem onde projetavam uma fé de que, por descuido ou misericórdia, lhes dariam uma quantidade maior ou a graça de repetir o prato. A hierarquia da cozinha era desconhecida por eles, mas na cozinha havia uma empregada designada a lavar a louça, a que servia os alimentos e, por fim, superior às outras, estava a cozinheira. Os ingredientes oferecidos pela prefeitura eram armazenados em caixas de papelão e refrigeradores até serem separados, fatiados, cozidos, fritos e assados diariamente, no início da manhã, cujo toque final ficava a cargo da cozinheira. A identidade dela era conhecida, justamente, pela sua ausência; ficava à espreita das outras, regulando o calor do fogão com uma espátula ou escomadeira gigantes enquanto a comida era servida por suas auxiliares na linha de frente, como as trincheiras das guerras modernas. Dela se via apenas uma parte do avental, espectral, por entre os ombros das subordinadas que transpiram pelas tocas.
O cardápio servido era dividido de acordo com os dias. Às sextas-feiras, como em um prenúncio do fim de semana, havia macarrão com salsicha ou frango empanado, as opções mais esperadas por garotos capazes de fechar acordos escusos e intimidar os colegas mais inofensivos para conquistar o direito a furar a fila. Às segundas, o menu parecia recolher-se à necessidade primária da alimentação, quando eram servidos pratos monótonos de arroz, feijão e bife. A carne era cortada em tiras escuras e finas, como a rabiola de um pipa. No intervalo entre o começo e o final da semana, a merenda alternava os mesmos grãos, mas com o acréscimo de salada de alface, tomate ou frango desfiado levemente avermelhado com polpa de tomate enlatada. Havia uma engenhosidade tremenda na composição das refeições, uma capacidade de precisar a quantidade de energia e o temperamento esperados dos alunos em respeito aos dias, às receitas, aos alarmes, às filas, às porções metrificadas e à disposição física e intelectual dos professores para aturá-los ao longo da semana. A comida era saborosa, mas tornava-se ainda mais com a descoberta dos garotos.
O pó, em si, era apenas tempero industrializado da marca Sazón. A descrição, porém, pode limitá-lo a qualquer produto produzido por qualquer empresa. Na verdade, o ingrediente introduziu os garotos à desconfiança e à maturidade, duas condições que inevitavelmente iriam experimentar nos próximos anos, mas que aconteciam graças ao pó, um meio insuspeito de amadurecimento para os parentes que armazenavam o elixir na própria geladeira sem a menor desconfiança. O pó ajudou os garotos a entenderem que as mães eram manifestações cheias de segredos, limitações, atalhos e truques para impor suas autoridades matriarcais, cuja estratégia tinha como base a capacidade falsamente inata de preparar uma boa comida e em grande quantidade. Não se precisava saber cozinhar bem, por exemplo, e tampouco se nascia sabendo. Bastava virar o conteúdo de uma embalagem facilmente manipulável, vendida em gôndolas de supermercado, para se conquistar habilidades, os cheiros e texturas. Era possível, agora, comparar as mães com as merendeiras - e ainda sobrepuja-las, compreendê-las, calcular seus movimentos e julgá-las como seres imperfeitos e manipuladores.
Natanael, o Nata, foi o primeiro a introduzir o pó de Sazón na escola. “É só espalhar na comida que fica ótimo”, disse para dois amigos que assistiam à alquimia. Nata não se limitava ao tempero misturado no preparo; ele havia descoberto algo além. A vantagem era acrescentá-lo com a comida já pronta, polvilhando-o, como uma farofa. O conteúdo da embalagem vermelha dava o sabor de carne a qualquer coisa. O marrom combinava com o feijão; o verde, com alface; e o verde-escuro com frango. Todas as opções, porém, combinavam com o menu servido a qualquer dia da semana e, se eram alternados, o eram somente para despistar o sumiço repentino de sabores específicos de tempero em casa. Nata pertencia à casta dos alunos sem os grandes atributos físicos dos melhores jogadores de futebol do colégio, atletas ainda mais etéreos com a atenção conquistada com a performance em campeonatos estudantis, e também não se encaixava na ala dos estudiosos, embora tivesse boas notas e nenhuma inimizade ou fragilidade, duas características atraentes para os tipos mais predadores, que eram algozes aproveitadores de brechas detectadas por um simples olhar amedrontado de um estudioso. Talvez, Nata pertencesse à turma dos espertos e malandros. Conseguia transitar entre a ordem, onde reconhecia e dominava a formalidade das palavras, dos números e dos gestos, e o espaço da desordem, quando explorava os subterfúgios das regras, a detecção e reprodução das mentiras para alívio de problemas e em benefício pessoal. Seu carisma era inerente e jamais constrangedor. Parecia reconhecer padrões, o que lhe dava vantagem nas aulas de matemática e no emaranhado das hierarquias institucionais. Ele havia descoberto o pó por meio de uma observação lógica: os garotos jamais prestavam atenção nos comerciais sem desenhos animados, mascotes, alegorias ou outros feitiços ativados por meio de cores e efeitos sonoros excessivos. Havia, então, algo escondido no restante dos anúncios publicitários: os absorventes, as giletes, as cervejas, o cigarros, as sopas prontas, os sucos de saquinho e, por fim, o pó da marca Sazón.
Naquele tempo, era mais ou menos sabido que muitas pessoas não tinham o que comer no país. O governo prometia acabar com a fome, mas muitos garotos da escola não percebiam que os políticos falavam sobre eles. Nata detectou na merenda parte da estratégia para diminuir os famintos e articulou tirar o proveito que lhe cabia com a comida gratuita, de fácil acesso e, graças à sua descoberta, tão deliciosa quanto a de um restaurante chique. Antes do Sazón, ele fez uma distinção entre os que passavam fome em casa ao observar a avidez dos que corriam para a fila da merenda e aqueles garotos bem alimentados, mimados, que consideravam a refeição das merendeiras mediana. Para ele, porém, os dois grupos eram classificados da mesma forma. Nata não acreditava que crianças são uma versão menos evoluída dos adultos mas, ao contrário, uma edição aprimorada. Acreditava que os mais velhos, em vez de crescerem, na verdade diminuíam ao estágio evolutivo dos girinos, tornando-se indistinguíveis e presos a espaços minúsculos. Era fácil notar que a escola era uma maneira deles de imporem a mesma rotina às crianças. Os sinais estavam lá: os corredores cheios de portas trancadas, as carteiras minúsculas, a agenda com horários delimitados, os professores rígidos, as merendeiras amarguradas. Nata não era um bolchevique, tampouco um conformista. Na verdade, as características que lhe tornavam esperto são facilmente encontradas em crianças: a chantagem emocional, o aprendizado rápido, a dissimulação, a furtividade aprimorada devido à baixa estatura. Todas as funções o conduziram à condição de líder do seu trio de amigos, que compartilhavam de uma ou outra habilidade com Nata, mas nunca todas as aptidões combinadas como ele. Neste universo das crianças, Nata encontrou espaço para a criação de regras próprias, ditadas pelos pudores ainda descontrolados das crianças e pela ingenuidade dos adultos. O pó deu a ignição para criar o regimento interno dos garotos. Sem alarde, pode aproveitar a possibilidade de movimentar-se dentro da estrutura existente da escola e inventar uma nova, como um esporte coletivo onde os atletas disputam contra adversários que desconhecem as regras e a própria existência da competição em si.
Nata apresentou o Sazón para Tiago Pé e Márcio F., dois dos seus melhores amigos, conscientes de que novidades eram destrutivas entre crianças. Inesperadamente, uma descoberta legal é espelhada e perde a graça em alta velocidade ou, pior ainda, cai nas mão das meninas e dos idiotas a ponto de desmoralizá-la no imaginário coletivo, uma condenação considerada por ele como perpetua. “Mantenha o segredo Sazón entre nós, mas só por enquanto”, recomendou.
Os três sentavam distantes um do outro na sala de aula, o que lhes dava visão integral das peculiaridades de todos os demais alunos. Pé, cujo apelido tem origem em seu pé enorme e horrendo, talvez fosse o mais burocrata dos três. Fazia registros de acontecimentos das aulas e dos alunos nos cadernos onde desenhava as próprias linhas com uma régua de trinta centímetros; memorizava detalhes dos enredos dos desenhos animados e sabia, mais ou menos, como desenhá-los nas aulas de arte. Os traçados nunca saíam idênticos aos da televisão, mas eram suficientemente semelhantes para serem reconhecidos. As habilidades de Pé poderiam ter resultado em algum tipo de personalidade notável mas, se havia alguma, era difícil percebê-la. A disposição para a organização não criou em Pé nenhum moralismo próprio ou julgamento alheio sobre os alunos, professores ou merendeiras. Nada. Não era bom jogador de futebol, nem o mais popular. Muitos sequer o conheciam e talvez só o notassem quando o nome era dito em voz alta na chamada, um nome que sugeria a ninguém diante do imaginário coletivo. A discrição ajudava a fazer suas informações sorrateiramente nos cantos da sala e escorado nas pilastras do pátio, mas seu único elo visível dele com o mundo exterior se dava com Nata, que parecia ajudá-lo a compreender a função das informações anotadas em seu caderno para possíveis benefícios pessoais e sociais.
Márcio F. provocava uma infiltração na relação dos três, mas nunca foi excluído por esse motivo. Coincidentemente, ele era quem mais abastecia os colegas com pó de Sazón quando foi apresentado à novidade. A família de Márcio era mais ou menos organizada: o pai tinha um alcoolismo leve e bebia em dias selecionados da semana, como às quinta-feiras e sábados, sem demonstrar qualquer sinal de violência. Era apenas inconveniente quando o que, para os garotos acostumados a valentões pinguços em casa, significava o lucro e até afeto. Naturalmente, quando o pai de Márcio F. estava sóbrio, tornava-se recluso e introvertido. Nos dias da semana, era mecânico, mas nunca pareceu se interessar em conversar sobre carros, funilagens, calotas, nem de nada em particular. A mãe de Márcio F. trabalhava como lavadora de pratos nos fundos de um restaurante de operários no centro de onde trazia atualizações sobre o mundo da gastronomia das classes baixas, como a composição dos pratos, dos fermentos, dos cortes e dos preparos de novos ingredientes. Os dois trabalhavam muito, verdade, mas era impossível explicar qual o significado de tanto trabalho. Para evitar a fome? Por amor? Para cuidar de Márcio? Por respeito à Constituição, que os obrigava a dar saúde, educação a uma criança vulnerável? Para evitar que o filho aparecesse como uma criança desnutrida nas campanhas publicitárias de combate à fome, que naquele tempo passavam repetidamente durante os intervalos do Jornal Nacional? O fato é que Márcio F. não cresceu como um garoto rico, mas era menos desleixado do que o habitual. Usava o cabelo com gel brilhante e, eventualmente, aparecia com um tênis novo para o futebol. Outro fato inquestionável é que crescera sem a autossuficiência emocional dos colegas: era carente e ingênuo, dois elementos perfeitos para ser empurrado à situações arriscadas nas mãos pérfidas dos inspetores, dos meninos mais velhos, dos folgados, dos idiotas, dos criminosos, dos professores frustrados e agressivos, das meninas super escrotas e das mais de uma dezena de classes opressoras de crianças mapeadas rigorosamente pelo Pé.
Era evidente que, com tantos recursos à mão e pela observação quase antropológica extraída pelo contato com os dois amigos, Nata sabia que as crianças obedeciam a padrões de comportamento inerentes. Na televisão, determinados comportamentos eram classificados como resultado da ausência dos pais, da violência doméstica, do bullying. Da fome. Ele discordava com ênfase. “As crianças são do jeito que são e pronto. Não é a fome que deixa elas horríveis”, dizia. “Tem uns que nascem ruins, outros são bons, outros são idiotas”, esbravejava. “A gente só tem que prestar atenção em quem é quem”, concluía. Não se tinha informação sobre os pais de Nata, uma lacuna que parecia engrandecer ainda mais sua aparência autônoma.
Os três comiam a merenda juntos e faziam o escambo de sabores de Sazón de maneira discreta por debaixo da mesa ou no banheiro, em frente à pia de azulejos brancos. Com o acréscimo do pó, o feijão adquiria uma camada vermelha que soltava o cheiro reconfortante das refeições que não custaram tempo e ingredientes para fazer e, assim, evitaram a decepção de comer algo que saiu com um gosto ou aparência distantes do planejado. Os garotos formavam pequenas montanhas de comida no canto dos pratos de plástico. Assim, podiam polvilhar pó sobre o topo da estrutura e imaginar que, no pico daquela montanha de merenda, a neve era colorida.
Márcio F., habituado aos chicletes, pirulitos, chocolates, refrigerantes e em mais de uma dezena de alimentos ultraprocessados na casa dos tios e avós, costumava ser o mais inescrupuloso. Misturava o tempero feito para salada no feijão e no frango para criar o que parecia uma receita própria, uma ração que o permitia ter energia para dedicar-se aos treinos como goleiro no time de futebol da sala. A seleção para formar o time do colégio, maior e mais formal, havia começado recentemente e Márcio F. se destacava como o único disposto a enfrentar a pressão contra os times vizinhos no Torneio Municipal. Os outros candidatos pareciam jogar no gol por obrigação ou ócio e desistiam na primeira ofensa da torcida - própria ou adversária - ou no primeiro gol sofrido de maneira inescrupulosa.
O mais atlético dos amigos, na verdade, não era o melhor goleiro nem nasceu com um talento fora do normal. Os treinos regulares lhe deram o mínimo de memória muscular para não atrair atenção negativa, mas ele não era suficientemente esperto para perceber a necessidade de goleiros minimamente razoáveis à disposição. Por isso, cercava-se dos comentários positivos dos colegas, que o faziam para incentivar sua permanência no gol, mas, principalmente, para evitar serem escolhidos de forma sumária a substituí-lo. Na cabeça de Márcio F., estas condições formaram um senso de heroísmo sublime, como se ele fosse uma fortaleza contra as angústias que poderiam aplacar todo o emocional da equipe em uma derrota. A emoção o impedia de notar que, na verdade, o time da sala jogava razoavelmente bem e o goleiro não costumava ser acionado com frequência suficiente para ser considerado o salvador do dia. De alguma maneira espetacular, Márcio F. praticava muitos exercícios físicos e continuava com sobrepeso; de alguma maneira espetacular, era um goleiro que murchava após o final do jogo. Seus olhos ziguezagueavam para evitar olhares alheios, um tique que entregava sua insegurança, seu medo, e o que dava a qualquer aproveitador a chance de explorá-lo. Talvez fosse assim o tempo todo e, quando jogava bola, sentia a atenção diluída entre os demais jogadores, que também exerceriam a função de protegê-lo em caso de briga ou da decepção arrebatadora de perder um jogo importante. E as brigas eram comuns entre garotos e garotas. Todos tinham um instinto assassino prestes a aflorar, até mesmo os mais quietos e aparentemente inofensivos tinham o ímpeto cruel de um mercenário. Claro, era preciso algum motivo mais ou menos claro para deflagrar uma briga generalizada ou torna-se o único alvo dela, e Márcio F. estava na posição perfeita da hierarquia escolar para ser abatido por um kamikaze: tinha consciência de que não sabia brigar por sonhar que tentava dar um soco em alguém, mas o golpe nunca era desferido com força contra o adversário.
Clayton, o Cleitinho, era amado por todos e tudo jogava a seu favor: os olhos claros, o dinheiro para cortar o cabelo todas as semanas, as bermudas de marca. Havia certo temor sobre sua vida da escola e não se sabia ao certo como era sua família, se eram idôneos ricos ou trabalhadores cansados e ausentes. Não se sabia ao certo se eram moradores de conjuntos habitacionais decrépitos ou das casas de favelas de luxo com quatro andares, cujo último pavimento costuma ter uma piscina inflável e uma churrasqueira com pequenos tijolos à mostra e uma coifa sempre desengordurada e prateada.
Quando Cleitinho descobriu o pó de Sazón, Nata havia permitido uma leve abertura de mercado, atraindo usuários com uma condição: os novos adeptos trariam opções variadas de Sazón para um escambo de sabores ou pagariam cinquenta centavos para que ele, Pé ou Márcio F. providenciassem novos pacotinhos. O esquema rendia quase o dobro do lucro do valor de cada unidade do tempero à venda no mercado e o lucro absoluto considerando que as unidades eram subtraídas de graça das próprias casas. Era uma jogada de Nata para sustentar a própria dependência e reverter parte do caixa para a compra de guloseimas mais caras, como o cachorro-quente vendido na esquina da escola com batata palha, milho, maionese, catchup, duas salsichas ao molho e um pão bege com uma casca levemente tostada - os elementos davam ao lanche a aparência de um despacho espiritual à beira da estrada ou a de um arco-íris desbotado e frustrante em um dia nublado. No calor, ele comprava gelinho de frutas, o geladão, com pedaços de morango ou pequenos cristais de achocolatado vendidos na casa de uma velha nas redondezas. Todas as vantagens foram conquistadas com a ajuda de tudo que lhe foi dado de graça - o pó e a merenda - uma condição que considerava uma liberdade plena, uma graça divina, oferecida somente às crianças; um conjunto de benécies que Nata considerava valioso e inexorável à sua sagacidade.
Os três amigos tinham autonomia sobre a própria rede de vendas de Sazón e cada um ficava com o lucro obtido com a venda dos próprios pacotinhos. O sucesso, então, era determinado pela habilidade de persuasão para atrair novos garotos. Como Pé costumava ser o pior vendedor entre eles, Nata sentia-se confortável em consultá-lo sobre possíveis novas presas para aliciar a venda do pó. Os nomes estavam sempre anotadas em seu caderninho. Impressionava como Pé, mesmo com informações em mãos, tinha pouquíssimo traquejo para manter um diálogo sem distrair quem o ouvia. Nata, então, era escudeiro e tutor de Pé, os dois unidos como sócios: um rastreava e o outro seduzia os candidatos. Márcio F. nem sempre estava a par do segredo deles e sentia-se desconfortável em ficar sozinho com Pé. Nata era quem os unia e os representava como um grupo instituído no ambiente escolar.
Márcio F. costumava defender alguns chutes de Cleitinho. Com o passar do tempo, o atacante entendeu que o goleiro era um obstáculo à sua glória, ao seu direito à adoração apaixonada, à coroação meritocrática de nascer daquele jeito, perfeito e magnético. A descoberta tardia do pó de Sazón foi um desaforo para Cleitinho. A má percepção aumentou quando descobriu que seu direito a este mundo de novos sabores tinha sido negado por Márcio F., sem desconfiar que foram os métodos de Nata o privaram até ali.
“Meus pais conseguiram uma caixa inteira de Sazón. Vinte pacotinhos, vários sabores. Você quer?”, ofereceu Cleitinho para Márcio F. no portão de entrada, um portão pesado e pintado de verde que rangia um som metálico e indecentemente alto nas manhãs sonolentas. A oferta parecia suspeita, mas a objetividade da pergunta fez Marcio F. se sentir inseguro para fingir ignorância sobre o esquema, especialmente consciente da exclusão de um dos mais conhecidos e respeitados jogadores de futebol do colégio. Por outro lado, se sentiu importante por negociar com alguém com tão alta patente e, no fundo, orgulhoso por ter tido a mesma capacidade de Nata para aumentar a própria rede de Sazón às custas de um garoto julgado como esperto. Estou passando a perna em um cara inteligente, pensava em uma camada de consciência que julgava recém-descoberta e empolgante. “Eu aceito, mas o que você quer em troca?”, perguntou Márcio F. Nada, disse o garoto. Não quero nada. Eventualmente, quando estivesse com fome no recreio, pediria um pouco. Seria como uma espécie de poupança, um instrumento ainda desconhecido por Márcio F.
Durante duas ou três semanas, Márcio F. foi mais ou menos o barão do trio: o mais poderoso, rodeado por sabores, o mais faminto. Usava o pó para negociar lugar em filas, vendia, o emprestava e comprava cachorro quente duas vezes por semana, um feito invejável até mesmo para o auge alcançado por Nata. Treinava ininterruptamente para o Torneio Municipal e não percebeu, porém, que vinte unidades acabam e Cleitinho apareceria para requisitá-las.
“Eu ouvi falar que você é o mais idiota dos três”, disse Cleitinho para Márcio F.. A fala era calma e parecia explicar ao garoto um tema complexo e exato, como a subtração ou divisão anotados nas lousas das aulas entediantes de matemática. “Preciso dos meus vinte pacotinhos de volta. Você se comprometeu a me dar eles quando quisesse. E eu estou sem nada. Você entendeu?”. Era uma sexta-feira e o pó de Sazón - todo o pé usurpado, deliciado por Márcio F. - deveria reaparecer até terça-feira.
O tempo era considerado excessivo para Cleitinho, que sentia-se adorado por receber tudo que lhe é de direito sem dificuldades e sem a ansiedade da espera. Por outro lado, era uma forma de estender o sofrimento psicológico que se instalaria em Márcio F., o consumiria e o tornaria covarde dentro e fora de quadra, levando à pique os bons resultados pessoais e de sua equipe, uma debacle irrecuperável.
Nata foi o primeiro a ouvir o relato desesperado de Márcio F. e disse que vinte pacotes eram um número alto até para ele, que os mantinha como uma espécie de moeda em constante circulação, como um ativo. Pé iria ajudá-lo como podia: daria a lista de nomes de garotos que faziam parte do esquema e caberia a Márcio F. negociar. O amigo, porém, disse tudo aquilo que o outro temia. O empréstimo, escambo ou compra de pacotes de Sazón iria, impreterivelmente, causar um processo de falência devido os termos dos acordos que seriam fechados em tão pouco tempo. Era uma bola de neve, ele disse. Quando se percebesse falido, já teria contraído dívidas inescapáveis que colocariam em cheque o bem-estar do trio na escola, a boa vivência no time de futebol e a sociedade formada pelos três amigos em torno da merenda aditivada. Por outro lado, Cleitinho tinha capacidades de invocar a própria rede de proteção oculta para espancar, bater, subtrair ou espalhar desinformação para colocá-lo no grupo das garotas e dos idiotas. As conclusões de Pé não soavam como feitas por ele. Márcio F. percebeu que o amigo reproduzia as palavras que Nata absteve em dizer, talvez por decepção ou desprezo por se relacionar com alguém tão desprevenido sobre a ordem que os regia invisível e implacável.
Mais de vinte anos depois, Márcio F. lembra-se do desfecho que o causo trouxe para si. A ameaça de Cleitinho moldou a angústia que acrescia em seu peito ano após ano. Quando o atacante do time adversário avançou pela área, Márcio F. não esticou o braço com a mesma avidez, a mesma capacidade de alcançar bolas indefensáveis, um braço que representava todo seu estoque de confiança. Ao contrário, permitiu os gols de Cleitinho enquanto fingia impaciência com os zagueiros à sua frente, uma irritação injusta e mentirosa a qual todos notavam.
Cleitinho nunca apareceu na terça-feira para cobrá-lo. Parecia distraído, desinteressado, duas atitudes que afloravam a tensão que mais tarde o tornaria no homem indomável e adorado pelas garotas. Márcio F. nunca pagou o pó de Sazón para Cleitinho, nem teve coragem para negociar com mais garotos, dado os riscos que o entrelaçariam. Não teve coragem de pedir aos pais, nem explicar a eles que à sua espreita estava alguém que o empurrava para um labirinto belicoso.
Márcio F. também não apanhou, mas foi ferido pela consciência de que as tribulações futuras o prenderiam ao mundo fora da quadra, onde seria condenado à conformidade e à reclusão dos adultos em seus sentimentos e afazeres cansativos, com medo constante da violência herdada e aprimorada desde a infância uns contra os outros.
A ameaça de Cleitinho - as mãos suadas, a insônia, a introversão, a distração na mesa do refeitório, quando revirava o pó na merenda e aquele ingrediente o enjoava profundamente - o forçou a se compreender melhor, a se admirar menos, a anos depois se candidatar a uma vaga como vendedor de uma loja de sapatos do bairro, quando já tinha se formado no ensino médio, e a sobreviver com um emprego que iria expô-lo aos olhares de todos da escola, que o veriam agachado, de cócoras, à busca de modelos de tênis, sapatilhas, chinelos, para serem encaixados perfeitamente nos pés de seus antigos conhecidos, como um súdito temeroso. O posto como goleiro para o Torneio Municipal foi abandonado, e um zagueiro irritado o substituiu sem agradecê-lo pela oportunidade.
Evidentemente, Nata e Pé abandonaram o pó de Sazón após as férias de julho e migraram para outra novidade. O trio se distanciou por causas naturais e nunca discutidas, como costumam acabar as amizades. Hoje, Márcio F. dorme e ainda sonha com os dois amigos e, eventualmente, visualiza o queixo pronunciado, os olhos claros e a imponência de Cleitinho, o melhor atacante do colégio. Percebeu que, acordado, não lembrava dos traços deles - inclusive o próprio - nos anos seguintes, quando tornaram-se adolescentes e, depois, quando viraram adultos e desapareceram com seus ofícios pela cidade. Nos sonhos, eles continuam com a mesma idade e a mesma voz de quando eram garotos e começavam a entender as coisas.
Quando, por coincidência, passou em frente ao colégio e se viu como adulto no reflexo do vidro de seu próprio carro, pôde novamente sentir o cheiro da comida com pó de Sazón da merenda. A imagem deu o poder para Márcio F. ver o passado e o presente no mesmo lugar, unidos e talvez conciliados por um breve momento. Foi quando percebeu que as escolas são quase sempre iguais e nada de extraordinário aconteceu com ele. Pela primeira vez, pôde dizer em voz alta: “Eu fui o melhor goleiro da sala”.
Link desinteressante
A Síndrome de Paris é uma sensação causada pela decepção de visitar a cidade e perceber que, bem, ela não é tudo isso.
Frase desinteressante
"Moço, eu posso levar esse suco de melancia para viagem?"