O pó. Assim as crianças chamavam o ingrediente guardado em embalagens quadriculadas, sempre nas cores primárias, cujo gosto armazenava o ócio e o conforto dos aromas dos almoços de domingo, a lembrança dos potes onde mães austeras guardavam as comidas preciosas e de onde exalava o cheiro dos grãos fervidos nas panelas brilhantes e antigas das avós. Os garotos escondiam o pó entre os lápis-de-cor sem pontas, entre as lapiseiras que fingiam serem canetas de grandes empresários do futebol, entre as borrachas gastas, os apontadores cegos e as canetas azuis, pretas, vermelhas, verdes - cuja tinta costumava transbordar e expandir-se como uma mancha de petróleo; o transportavam no fundo do bolso dos uniformes azuis de tactel, misturado a papéis de chicletes antigos e pegajosos, embolados a canudos de pirulito de coração retorcidos, aos clipes de papel inúteis, aos farelos de bolacha e entre o inventário extenso de itens obrigatórios que compõem um aluno do ensino fundamental mais ou menos funcional daqueles tempos. Era impreciso dizer o motivo de o pó ter se alastrado com tanto sucesso no paladar escolar. Não se falava abertamente sobre o assunto, inicialmente restrito à sociedade discreta dos cochichos, bilhetes, bancos vazios e cantos reclusos. Nos minutos que antecediam o alarme para o recreio, havia certa movimentação nas carteiras e mochilas dos que pertenciam àquele clube, mas eram gestos imperceptíveis aos excluídos e ignorantes a ele, o que dava aos garotos a autoridade dos deuses antigos para observar os mortais e também a destreza de sair e entrar em qualquer espaço sem ser notado, como os ninjas dos desenhos animados exibidos na televisão aos sábados, dias sempre gloriosos e ensolarados na infância, quando não havia escolas abertas, alarmes e professores autocratas para lhes infringir a necessidade de se preparar para os dias que pareciam abstrações distantes criadas pelos adultos.
Compartilhe esta publicação
A história do "pó mágico" que contagiou…
Compartilhe esta publicação
O pó. Assim as crianças chamavam o ingrediente guardado em embalagens quadriculadas, sempre nas cores primárias, cujo gosto armazenava o ócio e o conforto dos aromas dos almoços de domingo, a lembrança dos potes onde mães austeras guardavam as comidas preciosas e de onde exalava o cheiro dos grãos fervidos nas panelas brilhantes e antigas das avós. Os garotos escondiam o pó entre os lápis-de-cor sem pontas, entre as lapiseiras que fingiam serem canetas de grandes empresários do futebol, entre as borrachas gastas, os apontadores cegos e as canetas azuis, pretas, vermelhas, verdes - cuja tinta costumava transbordar e expandir-se como uma mancha de petróleo; o transportavam no fundo do bolso dos uniformes azuis de tactel, misturado a papéis de chicletes antigos e pegajosos, embolados a canudos de pirulito de coração retorcidos, aos clipes de papel inúteis, aos farelos de bolacha e entre o inventário extenso de itens obrigatórios que compõem um aluno do ensino fundamental mais ou menos funcional daqueles tempos. Era impreciso dizer o motivo de o pó ter se alastrado com tanto sucesso no paladar escolar. Não se falava abertamente sobre o assunto, inicialmente restrito à sociedade discreta dos cochichos, bilhetes, bancos vazios e cantos reclusos. Nos minutos que antecediam o alarme para o recreio, havia certa movimentação nas carteiras e mochilas dos que pertenciam àquele clube, mas eram gestos imperceptíveis aos excluídos e ignorantes a ele, o que dava aos garotos a autoridade dos deuses antigos para observar os mortais e também a destreza de sair e entrar em qualquer espaço sem ser notado, como os ninjas dos desenhos animados exibidos na televisão aos sábados, dias sempre gloriosos e ensolarados na infância, quando não havia escolas abertas, alarmes e professores autocratas para lhes infringir a necessidade de se preparar para os dias que pareciam abstrações distantes criadas pelos adultos.