A história do relógio Rolex perdido no maior aeroporto do país
Uma passageira avisa o comissário de que havia esquecido o relógio no aeroporto. O avião está prestes a decolar e o funcionário, em um português embolado, mas perfeito - é falante de inglês, francês, espanhol - diz que entrará em contato com a companhia aérea, mas que é impossível interromper a decolagem para buscar o objeto. A mulher loira está inquieta, mas mais tranquila do que deveria. As botas Dolce & Gabbana que vestia foram acomodadas em um compartimento da classe executiva onde foi recepcionada pelos comissários com baguetes e uma minúscula taça de Champagne, o verdadeiro espumante Champagne da região francesa com o mesmo nome. Uma toalha quente e um cardápio foram entregues a ela, a janela do avião foi fechada, um televisor touchscreen com dezenas de música, filmes e séries foi acionado à sua frente e as turbinas foram acionadas para, só então, terminada a coreografia entre tantos objetos e pessoas, ela perceber que havia perdido o relógio quando o retirou para passar pelo detector de metais.
O destino é a Suíça e há uma parada em Paris antes da chegada em Genebra. “Eu paguei R$ 80 mil nesse relógio! 80!”. Ela continua. “Eu nem deveria estar indo mais uma vez para lá”, acrescenta. Quando o avião decola de Guarulhos, a mulher é coberta por uma manta azul e cai em um sono resignado, ou quase, enquanto uma leve onda se forma na taça de espumante deixada à sua frente, bebida pela metade.
São onze horas de voo para chegar à Europa e mais duas até Genebra. A cidade fica em uma região - ou cantão - falante de francês, mas o país tem cantões onde é falado o alemão, como em Zurique, e, em escala menor, áreas onde falam italiano e um dialeto chamado romanche. O inglês e o espanhol são ouvidos pelas ruas e, sem esforço, também se ouve português brasileiro, português europeu ou de ex-colônias de Portugal na África, como os de Moçambique e Cabo Verde. A profusão de idiomas não torna o país sábio por natureza, pois é comum que nações da Ásia, África e povos originários da Oceania e da América do Sul falem uma dezena de idiomas oficiais e dialetos. É incomum, porém, que uma nação tradicional europeia não tenha uma língua própria. A população também é pequena. São somente 8 milhões de suíços e é difícil encontrá-los em tarefas cotidianas de Genebra, onde franceses, portugueses, espanhóis, franceses, cabo-verdianos e libaneses estejam nos serviços mais mundanos, como atendentes de farmácias e supermercados, e precisem modular o idioma a depender da freguesia (bonjour, good morning, bom dia, buongiorno, guten tag, buenos dias).
É curioso imaginar que um relógio Rolex tenha ficado para trás durante uma viagem à Suíça, conhecida pelo luxo e luxúria da relojoaria. Uma das sedes da marca fica em Genebra, onde vitrines apresentam os relógios e transmitem a sensação complexa de vê-los. Assistí-los é um sentimento de difícil descrição, mas diria que lembra uma galáxia vista em uma noite sem nuvens, o que condiciona o espectador a sentir que, na verdade, esses artefatos são puramente meteoritos. Há um feitiço nessa composição, nesse brilho e nos pequenos espelhos internos. Parece que, no caminho até às prateleiras, eles foram misturados organicamente pelas veredas subterrâneas da Terra e nos abençoaram quando, gentilmente, brotaram com milhares de anos de aperfeiçoamento e subserviência a nós, seus donos por destino. Claro, são seduções traiçoeiras. Em seu rastro há terras arrasadas em nações empobrecidas onde a água, os pulmões, a pele e a mente dos homens foram contaminados pela mineração e violência. Em uma interpretação metafórica, a jóia parece amaldiçoar os primeiros que a tiram à força do solo de onde pertenciam, indolentes. Até os compradores costumam escondê-las para impedir seu poder de atração aos maus olhares e ladrões. Em uma interpretação molecular, os relógios continuam inocentes e cintilantes.
O mercado de luxo faturou 149 bilhões de dólares em 2022, 8% a mais do que em 2021. No Brasil, foi preciso entrar em uma fila de espera para comprar um Rolex. A empresa produz os relógios na Suíça e, considerando o volume industrial do capitalismo mundial, conclui apenas milhares de modelos anualmente. Acredita-se que cada relógio é criado durante um ano, quando são testados centenas de vezes antes de serem vendidos. O serviço não é terceirizado e a Rolex os cria do começo ao fim. Na pandemia, uma queda na produção causou filas de compradores de novos modelos. É um investimento a longo prazo: relógios fora de linha se tornam raros e, consequentemente, ainda mais caros com o passar dos anos. Honestamente, a dona do relógio perdido no aeroporto sabia ser dona de um Rolex barato e novo e que, por isso, perdê-lo tenha lhe causado menos preocupação do que causaria a qualquer pessoa que perdesse R$ 80 mil por aí. Os parâmetros são diferentes. Na fauna brasileira, são facilmente encontrados Rolex de R$ 300 mil a R$ 500 mil em qualquer porta de hotel cinco estrelas. Os modelos raros podem chegar a quantias ainda mais incomensuráveis. O Rolex Daytona vintage do galã norte-americano Paul Newman, por exemplo, foi vendido a R$ 60 milhões em 2017.
Os Rolex não têm bateria, nem corda. As duas características são parte de seu feitiço. Há um mecanismo interno chamado rotor perpetual, criado nos anos 30. O mecanismo é formado por uma pecinha cortada em meia-lua que gira em torno do próprio eixo com a gravidade da Terra, como se estivesse sempre em queda. A rotação gera energia para enganchar uma cordinha a uma mola, o que forma um pequeno estilingue que arma e se desarma sozinho. Sempre que o pulso da pessoa é movimentado, o rotor gira. É um funcionamento manual. Caso fique na gaveta por mais de três dias, outro compartimento desarma a tensão da mola para evitar que haja um colapso interno devido a energia acumulada. Talvez seja difícil entendê-lo, mas o rotor é uma cooperação entre molas e pequenos metais que repetem os mesmos movimentos perpetuamente e em sincronia, como uma linha industrial misturada com mito de Sísifo. É a forma mais simples e correta que encontrei para explicar. Só a gravidade talvez prejudique o funcionamento desse sistema, mas, talvez, nem ela seja capaz de fazer o tempo parar em um Rolex. Se o avião da passageira tivesse caído no Atlântico, restaria pouco de mim e dela, mas o Rolex e seus motores analógicos sobreviveriram intactos, à deriva. Os relógios são à prova d’água e, eventualmente, exploradores são patrocinados para mergulhar em expedições submarinas para testar a resistência cada vez maior à pressão dos relógios. Apesar de serem a Coca-Cola do ramo, os relojoeiros da Rolex parecem temerosos com a concorrência e apresentam dezenas de novas patentes aprimoradas a cada relatório comercial anual acompanhadas de campanhas de marketing. Os relojoeiros da marca garantem funcionamento de mais de 30 anos mas, se intocados, é possível que durem mais de um século como se fossem novos.
Os ônibus, os bondes e os trens são gratuitos para quem se hospeda nos hotéis suíços onde trabalham camaroneses, senegaleses, brasileiros, portugueses e cabo-verdianos. A moeda própria (o franco suíço), a segurança, a fuga das guerras, as empresas transnacionais bilionárias, o transporte público, as instituições internacionais esportivas, diplomáticas e financeiras. Há uma convergência de benefícios nesse país para atrair desesperados e ambiciosos e ambiciosos desesperados de todo o planeta. Juntos, eles criam uma identidade difusa, difícil de ser compreendida. Entre eles há o império das telas coloridas com gráficos do mercado financeiro, dos outdoors iluminados com marcas luxuosas e das Ferrari que esperam, ordeiramente, a abertura do semáforo. Há também o pacifismo diplomático, as representações internacionais, os bancos onde dinheiro foi escondido por muitas décadas pelos suíços em cofres anônimos. Nas maiores cidades, o ecossistema formado consiste em avenidas cheias de pessoas, como em Genebra e Lausanne, por onde as pernas que deveriam se colidir, devido ao seu volume e diferenças físicas, caminham ordenadamente incentivadas por uma ilusão compartilhada, como um cardume de espécies distintas. Nas cidades menores, o silêncio é absurdo e os Alpes parecem titãs.
Nem sempre foi assim. A Suíça foi formada por confederações que ganharam dinheiro com o envio de mercenários para as guerras europeias. Um país acionava os mercenários suíços e em troca recebia matadores habituados a lutar no frio e, mais importante, sem qualquer complicação diplomática ou problema demográfico para os contratantes, quase sempre imperadores megalomaníacos ou nações ultra fundamentalistas (ou os dois). Os mercenários usavam uma tática de colunas de homens armados com longas lanças, o que os tornava impenetráveis para as cavalarias inimigas, que tornaram-se comuns na guerra.
A reputação militar suíça cresceu pela Europa. Os suíços usavam alabardas e arcos, mas eram fortes de fato nas lanças. Eles usavam uma tática de colunas que foi copiada por alemães, franceses e espanhóis, que adaptaram as táticas de avanço com lanças a um núcleo de homens com espadas de duas mãos, mais ágeis, com atiradores de longa distância. Surrupiados, os mercenários caíram no ostracismo e os suíços pouco quiseram saber de guerra dali pra frente. Os únicos restantes daquela época são os guardas listrados do Vaticano, chamados de a Guarda Suíça, que usam o mesmo uniforme. A entidade é formada por soldados muito bem treinados, mas que, honestamente, não botam medo em ninguém.
No século 16, os suíços, portanto, já sabiam como a malandragem funcionava e decidiram praticá-la. Aprenderam a continuar a ganhar dinheiro com a exportação para os vizinhos, que continuavam a se matar como sempre, sem perder um homem sequer. Naquela época, Genebra já era protestante e, por ordem do reformista João Calvino, os moradores deveriam abrir mão de adornos caros e desnecessários. Ninguém havia falado alguma coisa sobre relógios. Os joalheiros aperfeiçoaram a criação de objetos luxuosos que, em teoria, serviam para indicar as horas. Ou seja, eram necessários. Só isso, eles juraram. Em 1790, havia 60 mil relojoeiros em Genebra com relógios caros e pequenos para carregar no bolso e que, cerca de 4 séculos depois, foram parar no pulso.
Na Genebra do passado, as “fabriques” consistiam em pequenas empresas, às vezes formadas por duplas de uma mesma família divididas entre um maitres horloger, ou mestre dos relógios, e um maîtres merchand ou établisseurs, encarregado pela montagem e compra de pecinhas. É o caso da TAG Heuer, criada por Edouard Heuer na fazenda da família em Saint-Imier em 1860, na cidade suíça de Berna. A Rolex fez o caminho contrário: foi pensada em Londres, mas estabelecida na Suíça. O criador da empresa, o alemão Hans Wilsdorf, poderia até recepcionar a passageira brasileira em Genebra, onde fez fortuna. Claro, se estivesse vivo até. Wilsdorf morreu nos anos 60 e, antes de morrer ordenou que a empresa cuidasse do relógio da Igreja Inglesa da Santíssima Trindade, em Genebra, onde frequentava os cultos dominicais. Em um curto comunicado, a Rolex afirmou que a manutenção é um dos últimos desejos do dono. “E qual o prazo para continuar cuidando?”, perguntou um jornalista estrangeiro. “Para sempre”, responderam.
Historicamente, os relojoeiros incentivaram estudos de minerais para incrementar suas criações, mandavam abrir buracos pelo mundo e tinham suas extravagâncias pessoais, como o relógio de Wilsdorf. Muitos deles se especializaram em particularidades ínfimas mas importantes para criar pêndulos, calcular cordas e descobrir a expansão de metais para serem usados em relógios ou para ganhar dinheiro com qualquer outra coisa. Pelo menos um deles, Charles-Edouard Guillaume, ganhou um Nobel em Física pelo estudo de uma liga de aço que não se expandia com o aumento acelerado da temperatura, o que era útil para relógios e para… Cronômetros submarinos.
Os relojoeiros suíços também aprenderam a arte dos advogados. Mantinham olheiros para vigiar a fortuna alheia e figuras como o suíço Pierre Frédéric Ingold ganharam fortunas quando descobriram que máquinas com capacidade para fatiar pequenas peças de relógios, das quais possuía a patente, eram usadas por relojoeiros britânicos. É possível que os ingleses, processados, esperassem dar a mesma passada de perna dada nos suíços no ramo da guerra no passado, mas os contemporâneos eram mais espertos e ambiciosos. Eles também saíram pelo mundo em busca de jazidas de pedras preciosas sem, possivelmente, ter tido um pingo de remorso com o que deixaram para trás.Até hoje, é difícil rastrear o ouro ou o diamante presentes em um Rolex ou em qualquer outra joia. A origem do material costuma ser brutal, com solo contaminado, homens subjugados e desnutridos. Todo mundo sabe disso, mas até pouquíssimo tempo se importavam ainda menos em saber e muitos menos em tocar no assunto.
Com a pressão ambiental global nas últimas décadas, marcas de luxo, como a francesa Cartier ou a italiana Bulgari exigem mais das fontes de pedras preciosas compradas no atacado. Se comprovada alguma irregularidade da fornecedora, há o risco de desfazer negócio ou deixá-lo no banco de reservas até acertar as contas. É uma conduta importante, mas com uma fragilidade. Uma marca pode exigir mais responsabilidade de onde compra o ouro, mas nada impede, claro, que essa empresa contrate uma outra fonte, que pode pagar outra fonte, sem fazer tantas perguntas e exigências. Don't ask, don’t tell. É mais ou menos a forma usada pela indústria têxtil e da carne para “limpa” a própria barra e que, não à toa, frequentemente são denunciados em escândalos de trabalho análogo à escravidão ou crimes ambientais.
No Brasil, a loucura é ainda maior: um garimpeiro pode declarar a origem do ouro para o órgão regulador como bem entender. É só botar um endereço de um lugar regulamentado, de onde também se extrai o ouro e, na prática, ninguém vai checar se a informação bate. Os mineiros podem ser de fontes legais, das terras yanomami ou, sei lá, de cofres vigiados do banco Gringotes. A Rolex sequer diz publicamente se há alguma preocupação com os bons modos dos fornecedores e nem informa quem são. Como bom suíço, são discretíssimos com a vida privada e temos que respeitar.
É curioso que ninguém saiba onde fica a fonte do ouro, mas que todos consigam localizar um Rolex a distância. São grandes, redondos, elegantes. Os comissários telefonaram para a equipe em São Paulo para verificar se alguém havia visto um relógio com essas descrições tão brilhantes. O pessoal em terra ficou a postos para procurá-lo nas câmeras e verificar o setor de achados e perdidos, um local que é mais frequentado por coisas esquecíveis como guarda-chuvas.
O esforço da busca, imagino, não seria feito por um coitado da classe econômica que vendeu a casa para comprar o relógio dos sonhos (pode acontecer). Mas o empenho fazia sentido: tomar um relógio tão caro é mau negócio. Os ladrões de joias sempre saem no noticiário e são presos por policiais entretidos que encenam uma versão adulta de uma caça ao tesouro. Quem os rouba, os rouba por acaso, junto com um carro ou um celular, ou é um especialista nesse tipo de crime. São aqueles que sabem onde encontrá-los e, principalmente, para quem vender o material roubado. No ano passado, por exemplo, um homem foi até o shopping de luxo Cidade Jardim, em São Paulo, e quase caiu para trás. O próprio relógio roubado estava à venda na prateleira. O comerciante foi preso por receptação. Na delegacia, afirmou que não sabia qual era a origem dos relógios enviados pelo fornecedor.
Antes da escala em Paris, os comissários de bordo serviram tábuas com frios e pequenos picles gelados, taças de espumantes, vinho, café, omelete e mais uma dezena de sugestões e perguntas
sobre conforto e bem-estar feitas para a classe executiva. Uma das tripulantes, a única que soava como brasileira, foi convocada para falar fluentemente, com mais liberdade e carinho, com a passageira do Rolex perdido. Ela tinha boas notícias. O relógio havia sido encontrado e seria entregue a um familiar de confiança da passageira, que anotou o nome de um sobrinho e o entregou para a comissária de sotaque carioca. Ironicamente, a mulher do Rolex buscou o contato de um sobrinho no celular, um iPhone, que exibia as horas.
Quando o avisão pousou, o clima em Genebra estava horrível, com chuvas e nublado, e mal se via os Alpes. Eu peguei um ônibus até Lausanne, uma cidade muito mais interessante, e depois para Orbe, onde trenzinhos passam por entre os morros e pequenas videiras. Depois de alguns dias a trabalho, voltei para Genebra e caminhei livremente por várias ruas, fui até a sede da ONU e conheci o Jardim Botânico e suas folhas vermelhas. Quando imaginava ter dominado o mapa da cidade, me perdi. Andei em linha reta até parar em um pub a dois quarteirões do lago Lemann. Um garçom libanês me serviu uma Guinness. Um grupo de sul-africanos loiros esperava pelo rugby enquanto ingleses assistiam à Fórmula 1. Por outra ironia, a corrida do dia era em São Paulo, em Interlagos, onde ainda era dia. As imagens me deram saudade da minha cidade. Os pilotos aceleram, ultrapassam o S do Senna e, numa das curvas, vi os anúncios da Rolex. As imagens fizeram reviver a cena insólita do avião e ri sozinho no balcão.
Leitura interessante
O Rodrigo Casarin está no Substack com seu renomado Página Cinco. Livros e livros. Ele faz uma reflexão importante sobre o futuro das livrarias.
PS: meu último texto talvez tenha soado ranzinza. Quero deixar claro que é um incentivo aos jornalistas.
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eu amo que o nome dessa newsletter é desinteressante quando na verdade ela é absolutamente interessante.
uma das mais aguardadas na minha caixa de e-mail!.