A história obsessiva do meu pai com Sandy & Junior
Meu pai, um homem negro, na época com uns 30 anos, pedreiro que saiu do sul da Bahia para tentar a vida em São Paulo, um indivíduo às vezes taciturno, tabagista desde os 15 anos, deitava-se no sofá de nossa casa, se servia de um dreher sem gelo, abria uma maleta com CDs e colocava para tocar um dos seus álbuns favoritos: As Quatro Estações, do Sandy & Júnior.
Eu nunca entendi a fixação do meu pai por Sandy & Júnior. Nós nunca tocamos no assunto. No final dos anos 90, fomos a uma loja de CDs na Silva Bueno, no Sacomã, e ele comprou as edições originais de Sandy & Júnior, inclusive uma cassete de quando eles ainda eram crianças e o Junior tinha mullet. Achei que aquilo era um presente para mim, mas o tempo demonstrou que meu pai fazia um agrado a seu espírito indecifrável.
Só quem viveu as agruras dos anos 90 entende o que foi Sandy & Júnior e como meu pai não era, nem de perto, o público-alvo. Mas estávamos imersos, marinando nas garras da indústria cultural despudorada. Afinal, vivíamos a era do pecado,a ditadura tinha acabado e a televisão achava de bom tom expor gente pelada comendo sushi ao lado de crianças no horário de almoço. Tudo era normal e anormal.
Nossas maiores preocupações eram coisas absolutamente burocráticas, como o Fundo Monetário Internacional e ter um telefone fixo na sala. Nem uma inflação tínhamos pra reclamar. Nada. Éramos almas que vagavam em círculos em um aquário cheios de novidades estranhas e familiares, com queixas sociais quase dinamarquesas e sabemos que todo brasileiro - ou paulista - guarda em si o ímpeto de um taxista que reclama de absolutamente de todas as coisas materiais e imateriais do universo.
E lá estavam eles: dois seres absolutamente angelicais. Fofos. Carismáticos. Talentosos, com almas espirituosas, filhos do Xororó. De repente, Sandy & Junior eram o feito artístico mais relevante vindo da cidade de Campinas, ocupando um vácuo desde que a Hilda Hilst se mudou para lá para tomar cabernet à beira do Taquaral.
Eles cantavam ao lado de gente pelada comendo sushi, sim, mas quando os holofotes lançavam feixes de luz sobre a performance deles, podíamos sentir a ascensão de tudo aquilo que é sagrado e primordial. Eles resgatavam da corrosão os tempos perdidos da inocência. Tão fofos. Carismáticos. Talentosos. Filhos do Xororó.
Eu era uma criança quando Sandy & Junior aproximavam-se da adolescência. Pra mim, então, eram como irmãos mais velhos. Para ser honesto, por um tempo acreditei que eram namorados ou algo a mais: duas almas sibilantes que cantavam sobre a perenidade de amores dóceis. Afinal, mesmo vendo gente pelada comendo sushi, nós queremos e às vezes exigimos uma vida harmoniosa, pacífica e pueril que eles nos ofereciam.
A indústria cultural não me deixava esquecê-los. Tive um álbum de figurinhas do Sandy & Junior e um caderno Tilibra com a cara do Junior porque a Sandy era pra mulher. Eles eram como seres de outra camada terrestre, intocáveis, e sinto que viraria uma estátua de sal se os visse na rua - mas acho que nem uma escola comum eles frequentavam. Acho que eles sequer saíam na rua para passear. Até que, um dia, minha mãe me deu uma notícia importante.
As freiras da escola onde minha mãe me matriculou, no Ipiranga, iriam levar o fucking Sandy & Junior para se apresentar. Eu devia ter uns 5 anos e fiquei anestesiado. Lembro que o clima no colégio Catarina Labouré, um prédio tombado que lembra Hogwarts ou um internato tipo o do Ateneu, era de êxtase. Iríamos viver nosso Lollapalooza mirim.
No dia esperado, dormi mal. Revirei na cama. Coloquei minhas papetes e minha mãe preparou uma lancheira. Na época, o maior hit, se lembro bem, era Vai ter que rebolar, uma música insuportável mas que me embalava a ponto de me dar o desejo de abrir uma rodinha de porrada. Esses eram meus planos, maquinados na mente cuja despreocupação jamais irei ter novamente.
O Sandy & Junior, então, subiu no palco e, na segunda ou terceira música, percebemos que eles não eram o Sandy & Junior de verdade. Uns cutucaram o outro. Veja. Eram simulacros! Uma dupla cover! O cover oficial! Lembro que sentei em um banquinho com azulejos de caquinho enquanto assistia à apresentação e passei a me sentir solitário, vagueando pelas minhas emoções em formação.
“Havia, então, mentira no mundo”, pensei. As freiras nos enganaram. A Igreja Católica mente. Naquele momento, olhei para as nuvens, ajeitei as minhas papetes e entendi profundamente o que a Sandy queria dizer. “Eu cresci agora”, respirei fundo, “e sou mulher.”
Meu pai deve ter percebido meu aborrecimento. Nas semanas seguintes, pegamos um ônibus até a Silva Bueno e começamos a comprar ainda mais CDs do Sandy & Junior em um sábado pela manhã. Ele tentava abonar minhas inquietações, remediar a primeira de muitas decepções que a vida me reservava. Só que ele não deve ter notado, mas o feitiço havia me abandonado. O Sandy & Junior cover foram o meu antídoto para o Sandy & Junior real, o da televisão, o do caderno Tilibra. As sombras da caverna não eram mais deuses.
A vítima da vez tornou-se, então, meu pai. De repente, ele passou a alternar Raul Seixas, Racionais e Sandy & Junior no grotesco aparelho de som gigante que ele havia parcelado em 25x no carnê das Casas Bahia.
Para os parâmetros do conjunto habitacional onde morávamos, ele era um tipo bastante convencional. Isso significa ter um leve alcoolismo, um amor paterno meio desajustado, gosto por Fórmula 1, Marlboro vermelho. Me mandava ir na padaria comprar Coca-Cola, vestia um par de Raiders cinza e tinha uma notável dificuldade para demonstrar sentimentos. Tudo dentro do normal.
No apartamento onde morávamos, eu me fechava no quarto sempre que ele começava a escutar Sandy & Junior. Quando minha mãe não estava, ele cochilava no sofá e dava algum jeito mirabolante de colocar as músicas no repeat.
Uma daquelas canções me marcou: Não Ter. A música é tipo assim: Não ter, não ter um perfume que não se esquece/Não ter o ruído do seu sorriso/Não ter essa hora tão mágica/Não ter o carinho que eu preciso”. Ouvindo hoje, é uma puta letra triste. Meu Deus.
Quando instalamos uma antena decente em casa, lembro de assistir a esse mesmo clipe no canal 21. Lá estava: Não Ter. No vídeo, os dois passeiam em um parque e a Sandy parece sofrer por não ter essa hora tão mágica. O Junior, enquanto isso, anda de bicicleta. A música continuava despurodamente repetitiva.
Não ter/Não ter/Não ter/Não ter/Não ter/Não ter. No dia seguinte, meu pai continuava a ouvir. Não ter/Não ter/Não ter/Não ter/Não ter/Não ter. E eu, lá, tentando esquecê-los. Não ter/Não ter/Não ter/Não ter/Não ter/Não ter. Me escondi embaixo do edredom. Não ter/Não ter. Até que deixei de me aborrecer por nunca tê-los visto, ou quase isso. Não ter. Meus olhos marejaram. Não ter. Quais eram as coisas que eu nunca havia tido? O que eu sentia, senão a ausência intempestiva do não ter? O que eu, verdadeiramente, tinha? Nada.
Assim, caminhei trôpego em meu caminho rumo à adolescência, uma adolescência melancólica, com enredos melodramáticos que ainda estão em mim. O que os adolescentes não percebem é que os pais também estão em fase de crescimento. Eu acreditava, até então, que meu pai era um ser estático. Que ele havia se tornado um adulto e, pronto, é isso aí.
Quando estava na quinta série do fundamental, comecei a ser mais exigente com ele. Exigia coisas que sequer sabia quais eram e aquilo que sabidamente me incomodava. Gostaria que ele tivesse uma agenda mais afetuosa, que bebesse menos, que não aumentasse o volume do aparelho de som parcelado nas Casas Bahia. O que estava em jogo não era o hábito irritante dele em ouvir Sandy & Junior, mas a minha imposição em ser um elemento respeitado dentro daquele arranjo doméstico.
Tomei as medidas cabíveis. Quando ele me convidava para ir na Silva Bueno, eu reclamava. Batia o pé. Me recusava a participar. Ele não precisava de mais CDs do Sandy & Junior, nós já tínhamos quase todos. A Sandy e aquele irmão dela lá haviam crescido. Eram adultos. Ninguém ligava mais tanto para eles e, para azar de todos, o Junior começou a pagar de gatinho, com os braços malhados, uma regatinha branca, a tocar bateria no Serginho Groisman. Quem eu seria se perdesse a corrida da maturidade para eles?
Um belo dia, liguei na MTV, que pegava porcamente aos chuviscos, e reencontrei o Sandy & Junior após anos. Eles haviam lançado Desperdiçou. O Junior aparece gatinho, de regatinha, beijando uma atriz no clipe - quando eu ainda acreditava que ele não havia desenvolvido qualquer traço de erotismo até então. Você desperdiçou o amor/Partiu e nunca mais ligou/Você me complicou/Me usou/Fugiu com a minha paz, eles cantavam.
Eu genuinamente gosto dessa música até hoje, quando tenho a idade que meu pai tinha quando começou a se interessar por Sandy & Junior. Talvez seja uma crise elementar das três décadas de vida. Nessa idade, embora tenhamos conquistado algo aqui e ali, nós, homens com uma profícua capacidade de inexpressividade sentimental, ainda estamos emaranhados aos traços da adolescência. E o Sandy & Junior, embora tenham crescido, são uma espécie de adolescentes eternos.
Em algum momento, eles anunciaram uma turnê de reencontro porque, sei lá, não faz mal lotar o Allianz Parque. Vi as imagens de pessoas com aquela faixa do Sandy & Junior na cabeça, chorando com Imortal e todas essas lembranças voltaram à minha mente adulta.
Voltei a ouvir Não ter e outras músicas desse passado desbotado e, para minha surpresa, muitas delas eram versões da Laura Pausini, como a própria Não ter (Non c’é, no italiano romano). Dessa vez, não era uma mentira. No encarte do CD, Pausini sempre esteve creditada. Foi só eu que não vi, preocupado que estava com o Fundo Monetário Internacional.
Em 2022, comecei a preparar um perfil do Andreas Kisser do Sepultura para o UOL. Haveria um show em São Paulo com amigos dele em homenagem à esposa Patrícia, que havia falecido vítima de um câncer.
Consegui uma credencial para acompanhar os bastidores, onde sentei do lado do Samuel Rosa, que tomava um refrigerante, topei com a Pitty e tentei arrancar uma aspa do Dinho Ouro Preto, que se escondeu em um camarim. Como repórter, criei uma casca grossa ao entrevistar famosos. As melhores reportagens são aquelas que tratam os anônimos como famosos e os famosos como anônimos. Assim, conseguia acessá-los com franqueza, distanciamento e sem deslumbramento.
Enquanto separava anotações em meu bloquinho de notas, olhei para o lado e tomei um choque. Acompanhado por um assessor, vi o Junior. O de verdade. Olhei pelo ombro dele e lá estava a Sandy. A de verdade. Décadas depois, eram os dois, de verdade verdadeira, à minha frente. A Igreja Católica não mentiu, ela só tem o tempo dela. Fingi, porém, costume. Eles eram mortais. Assisti ao show, Sandy cantou Quando você Passa (Turu Turu) e Junior, bem, tocou bateria.
Vê-los à minha frente não me transformou em uma estátua de sal. Para ser honesto, fiquei mais surpreso com a baixa estatura dos dois, que aparentavam gigantescos na televisão. Eles continuavam idênticos, o tempo é que havia passado irrefreável para mim.
Eu, que tenho essa habilidade em tornar complexas as confusões dos outros e aquelas que carrego comigo, talvez tenha chegado à conclusão de que meu pai só gostava verdadeiramente das músicas do Sandy & Junior. E, quando falo deles, na verdade só tento recompor o estranhamento dos filhos em tentar decifrar os enigmas dos pais.
Também me fez pensar que há anos perdi contato com meu pai e talvez tenha entendido o que é o tal do Não ter. Consequentemente, fiquei dias com essa joça de música na cabeça, martelando Não ter/Não ter/Não ter/Não ter/Não ter/Não ter/Não ter/Não ter./Não ter... O que, verdadeiramente, eu tenho? Que música triste. Talvez seja a hora de encerrar esse texto e ter essa hora tão mágica, recompondo todas as coisas que gostaria de ter até não tê-las mais.
Que texto lindo, me fez rir e quase chorar. Lebrei do trecho da música do legião "Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo, são crianças como você"
Muito bom. Fico particularmente tocado porque apesar de ter "vivido" também o final da época de S&J como criança dos anos 2000, só revisitei a discografia deles e passei a gostar mesmo no fim da adolescência/jovem adulto (a tv de casa sempre tava ligada no Viva e o seriado deles era reprisado no horário do almoço, pra completar). É bizarro a gente perceber que as letras eram muito pesadas pra época, e tem uma dessa fase "clean" que eu gosto muito: "Mais um Tempo pra Crescer". Bom trabalho!