A história sobre o luto de todas as coisas
São Paulo, entre junho de 2023 e maio de 2024
Uma mulher foi atropelada por um ônibus na rua Comandante Taylor em uma quinta-feira de julho. Eu sabia que os dilemas dela estavam prestes a acabar, mas que os meus teriam contornos mais traumáticos a partir daquela tarde, uma tarde ensolarada, onde ela morreria e eu continuaria. O destino designou cada uma daquelas pessoas ao meu redor para estar ali, naquele momento, experimentando uma percepção coletiva com efeitos individuais imprevisíveis. Todos nós vimos quando a respiração da mulher se tornava mais ofegante. Todos nós percebemos que o tórax subia e descia com menos força, ela mais pálida e indefesa. A ansiedade ao vê-la nesse estado possuía essa condição inútil, mas havia também nisso um sentimento fascinante. Ninguém a ajudava com uma massagem cardíaca, ninguém pedia para se afastar e facilitar a ventilação. Estávamos num surto de vaidade, usufruindo de um luxo. Víamos o momento exato da morte. Quem vê estes momentos? Médicos? Assassinos? Era uma carga dramática, uma encenação com intervalos, pois os atropelamentos possuem essa natureza teatral, os atos divididos entre a culpa ou a fuga do motorista, a vítima violentada pelo acaso, os familiares que choram ou fazem telefonemas para outros familiares, os curiosos que filmam com os celulares, as preces, os cochichos, a chegada dos bombeiros, dos socorristas, dos policiais, dos agentes de trânsito, o som metálico da maca, as luzes e os sons das sirenes das ambulâncias que, unidos, formam a atmosfera inverossímil da fantasia.
Honestamente, o atropelamento teria me causado menos angústia se fosse a um ou dois bairros de distância ou em um outro tempo. Aquela rua, afinal, me era familiar. Nas férias de julho de 2004, eu e meu pai caminhávamos por ela a caminho do McDonald 's na rua Silva Bueno, um prédio com dois andares e azulejos em tons pastel que, para a minha infância, tinha a grandiosidade de um monumento. Nós, do Sacomã, estávamos, finalmente incluídos nos acontecimentos mundiais emitidos por aquela construção em que os clientes se arrumavam elegantes para comer um Big Mac, pagando uma fortuna por uma refeição que lhes tomava minutos. Lembro de ter abandonado o McLanche Feliz naquela época. Os brinquedos que o acompanhavam perdiam a graça e eu imaginava que abandoná-los seria um sinal de maturidade, algo para impressionar os outros garotos, algo para demonstrar minha capacidade de progredir e alertar meu pai que poderia me equiparar a ele.
Nunca descobri se ele notou essa diferença em mim. Na minha memória, aquele adulto negro à minha frente, com cabelos enrolados como os meus, não fazia qualquer comentário memorável, nem parecia distinguir entre os lanches ou o significado das minhas decisões. Fazíamos o passeio anualmente, só nós dois, e havia nisso alguma forma de ritual, como a chegada de um solstício ou a de um protocolo. Enquanto saíamos, minha mãe trabalhava como ajudante de cozinha - lavava pratos e panelas, resumidamente - em um restaurante pequeno na avenida Anchieta. Meu pai, talvez, desejasse compensá-la nesses momentos e se provar útil ao me levar para passear aos sábados, quando ele estava de folga e ela recebia a louça do dia mais agitado da semana, quando se servia feijoada a clientes sem pressa para ir embora. Não recordo se alguma vez trocamos o McDonald 's pelo restaurante da minha mãe. Imagino que não. Não havia fascínio no trabalho dela. Vê-la assim nos daria uma sensação realista e indesejável dos dias da semana, quando ela executava as mesmas tarefas do trabalho em nossa casa. No McDonald 's, era o contrário. Me lembro de encher os copinhos de ketchup e mostarda, organizar a batata frita uma ao lado da outra na bandeja colorida e formar uma ferrovia imaginária o que, prestes a me tornar adolescente, era algo que ainda me conectava à imaginação da criança que, a cada dia, se extinguia.
Depois de lá, eu e meu pai íamos às Lojas Americanas no outro lado da rua. Naquele ano de 2004, eu comecei a sentir o início da apatia dele, que parecia mais velho do que eu poderia mensurar mas que, olhando para as fotos de hoje, se vê um homem jovem e bonito, com as linhas do maxilar definidas, os braços fortes, peludos e negros. Tinha pouco mais de 30 anos, a idade que tenho. Hoje, entendo que ele ainda perseguia as próprias dúvidas e se transformava em um novo ser, um ser anômalo, cuja responsabilidade paterna talvez o impedisse de ser. Afinal, eu crescia. Ele, também. Não conseguia mais manipulá-lo como antes. Nós estávamos amadurecendo de forma contínua e simultânea.
Nas idas anteriores às Americanas, eu esperneava, chorava e o constrangia até que ele comprasse os brinquedos que eu queria, o que lhe causava dívidas e discussões com a minha mãe. Poderia ser um skate, uma bicicleta, um PlayStation, um Sega Saturno, Doritos, Guaranás, Bis, Twix. Passávamos pelos corredores de chocolate, entre as cores vibrantes, e eu chorava até ele se sentir mal. Ele não podia nem hesitar em recusar a compra de algo do meu desejo. Ano a ano, a situação mudou: eu estava prestes a entrar na adolescência e sentia que meus escândalos poderiam soar como o de um bebê, uma postura inaceitável, uma postura que me faria retomar a fragilidade de uma época deixada para trás. Outra motivação era que meu pai se tornava cada vez mais indiferente à minha performance com o passar dos anos. Meus traços mudavam, minha malícia tornava-se visível e meu apelo emocional contra ele se esvaziava. Dali em diante, nós inevitavelmente iríamos interpretar outros papeis, papeis ainda incertos, com semelhanças e distinções irrevogáveis. Nós nos tornávamos homens e, talvez, ele pudesse enxergar os trejeitos dele em mim, distinguíveis e previsíveis em minhas ambições. Ele, talvez, não sabia, mas para me safar de ser descoberto, fiz uma negociação onde nem eu, nem ele saímos no lucro mas, sim, o tempo, que nos levava adiante.
Em vários estágios da minha vida, cogitei que meu pai era caridoso ao me levar para passear e a me tolerar. Em outras ocasiões, o julguei ferrenhamente. Fui uma criança com uma natureza moralista e a adolescência acrescentou novas camadas características: me tornei muito mais tímido e meus julgamentos adquiriram aspectos ainda mais crueis. A união dessas características me fez chegar a conclusões mais impiedosas e amargas, marinadas na condição meditativa do meu silêncio. Lutei por anos contra o prepotente desejo de julgamento causado pela minha imaturidade, mas ainda continuo tímido aos 30 anos. Apesar de tanta sabedoria que julgava ter, não pude perceber que os passeios com meu pai pudessem ter motivos mais simples: ele me amava e queria passar mais tempo comigo. É uma tese simplista, da qual não me conformo em aceitá-la.
Nenhuma dessas memórias teriam voltado a mim se aquela mulher não tivesse sido atropelada enquanto eu almoçava num restaurante baiano na esquina. Percebi que minhas lembranças e meu raciocínio estavam intactos, mas que as dela se perdiam em algum tipo de vácuo inesgotável. Ela deveria ter 25 anos, o que fazia eu já ter vivido mais tempo do que ela pôde viver. Nós tínhamos vivido a pandemia juntos, havíamos junto visto Bolsonaro e Lula serem eleitos, havíamos passado juntos pelo mesmo McDonald ‘s, pela mesma Americanas, andamos juntos nas mesmas calçadas com minutos de diferença, olhamos para os mesmos semáforos juntos até que, sem nos conhecermos, tomamos trajetórias opostas, caminhos onde iremos nos encontrar quando os dois experimentarem a morte, o que de maneira bem previsível me fez perceber que isso poderia acontecer a qualquer momento e que meus conflitos, inclusive aqueles com meu pai, tinha um prazo de validade incontornável e imprevisível.
Quando a vi ali, no chão, eu passava por meses de uma apatia dissimulada. Finalmente, eu era um adulto, estava tomando as rédeas do meu futuro, mas daqueles dias sinto que era impossível controlar sequer a sensibilidade na ponta dos meus dedos. Havia me separado da minha ex-namorada, mudado de casa e morado um mês em uma hospedagem no Jabaquara, onde desconhecia as ruas e, honestamente, passei a desconhecer também meus sentidos. Não lembro do sabor de uma refeição ou um contratempo que me despertasse alguma emoção. Andava como um sonâmbulo, um fantasma anônimo, em busca de um apartamento para alugar, de sanar as obrigações do trabalho e, de algum modo ainda desconhecido, continuar a viver na cidade onde nasci e me sinto incapaz de abandonar. Em um sentido mais alegórico, eu experimentava a mesma sensação de desfecho que impus à relação com meu pai e presenciava o mesmo encerramento que a morte impôs à vida daquela mulher desconhecida, a sentir a paz oferecida às coisas que morrem.
Depois que encontrei um apartamento para alugar no centro, passei dias assistindo a programas de ciência para matar o tempo. Não me curvei ao álcool, drogas, nem procurei por sexo. Quando saía para uma cerveja, dizia aos meus amigos que estava bem, que as coisas são finitas e temos que estar preparados ao encerramento delas até que eu pudesse acreditar nas minhas mentiras e convencê-los que eu havia desvendado um enigma. Bastava esperar, cuidar da casa, cuidar da mente, passear por uma cidade com milhões de pessoas, se misturar, até ter perspectiva de que todos passamos pelas mesmas coisas, que nada é inédito, nem os fins, nem os começos.
A influência daqueles programas espaciais era visível nessa mentalidade. Com eles pude raciocinar que eu era alguma espécie de carbono bem desenvolvido - assim como os meus sentimentos mais melancólicos eram fórmulas químicas da mesma fonte primordial e inexplicável que criou o universo. Tentei me equivaler às estrelas, um traço prepotente e, ao mesmo tempo, uma tentativa reducionista de ignorar a complexidade daquelas sensações. Hoje, penso que não importava se eu fosse insignificante no rumo de todas as coisas. A realidade é que eu tinha direito ao sofrimento. O que eu sentia era meu, não pertencia somente à matéria. Eram minhas, ainda que indesejáveis e incompreendidas. Eu poderia ter ido à praia, ver as gaivotas em Camburi, ir ao Rio de Janeiro, Londres, Belo Horizonte. Aquela dor seria uma criatura acoplada a mim, seria eu mesmo e outro ser sibilando na mesma frequência indistinguível.
Um episódio da série, em especial, me chamou a atenção: o emaranhamento quântico, no qual partículas de luz nascem conectadas de uma maneira inexplicável e permanecem assim mesmo quando são desconectadas e vagam a anos-luz de distância uma da outra. O pedaço de um fóton se propaga pelo universo e a mudança em sua rota implica na mudança da outra parte; a dupla original, então, sincroniza o movimento rotativo original do qual se originaram, como num nado sincronizado. O elo é matematicamente insolucionável pela ciência.
Após meu encanto com o fenômeno, passei a caminhar e a pedalar de bicicleta diariamente e a observar também algo improvável na cidade, onde todas aquelas pernas dividiam o mesmo espaço, se esquivando instintivamente sem razão até terem o curso alterado pela morte, quando finalmente atingiam a sincronia dos tempos onde ainda não haviam nascido. E assim vi, por exemplo uma senhora com a cabeça aberta no Viaduto do Chá, rodeada por guardas civis e por uma criança que parecia ser sua neta; um carro do IML na Alameda Campinas à espera de um senhor infartado; outro na 13 de Maio, cujo motivo da morte nunca descobri; um sujeito que cortou o próprio pescoço na Duque de Caxias; migalhas de ossos de um atropelamento na avenida Padre Arlindo Vieira; o alerta de uma parada abrupta na estação Anhangabaú após alguém se lançar nos trilhos do Metrô. Quem foram aquelas pessoas? O que as diferenciava de mim?
A suspeita de que a morte andava por todas as ruas me fez sentir conectado ao meu pai. E pais costumam ter espíritos tão misteriosos como os das pessoas mortas e que podemos atribuir a eles as qualidades e os defeitos que pudermos. Talvez, pensei, ele também fosse um ser inconformado e, paradoxalmente, confuso, como eu sou. Disperso, errático. Sempre o talvez.
Em fevereiro de 2016, minha mãe descobriu que ele a traía e que meu pai havia escondido o caso por alguns anos com uma mulher do bairro. Quando isso aconteceu, eu já tinha 19 anos. Conseguia entender que a traição era a deixa para exercer a minha autoridade moral sobre ele, minha moralidade autoproclamada do passado e que, sem remorso, não o deixaria impune. Me afastei dele que, algumas semanas depois, saiu definitivamente de casa. Continuei a viver ali com minha mãe com a certeza de que por vaidade, incerteza ou tesão, nunca cometeria um ato similar. Nunca iria me indispor a ferir quem me amava, que nunca iria formar uma família e substituí-la por outra. Alguns anos depois, porém, anunciei à minha mãe que eu também estava de saída para morar com uma namorada da qual, anos depois, também me separaria e deixaria para trás o apartamento onde vivíamos. Era o início de uma hipocrisia que eu deveria tolerar, meu Reveillon.
Quando isso aconteceu, comecei a organizar as minhas roupas, a procurar o hotel provisório no Jabaquara, a entrar em contato com imobiliárias e a visitar imóveis na Saúde, no Sacomã, na Vila Mariana, Santa Cruz. Apartamentos com pé direito alto, a valores exorbitantes, alguns com vagas para garagem, outros com fiação precária, com cozinhas desproporcionalmente grandes ou pequenas em relação aos demais cômodos. Em um deles, na Praça da Árvore, havia lixo por todos os cantos e a corretora, constrangida, disse que o antigo morador fez as malas e saiu. Havia pertences dele pelo chão, a pia ainda estava suja e com alguns copos com líquido viscosos pela metade.
Os abandonos. É impossível contornar os abandonos. Quando os faroletes das ambulâncias se aproximaram da mulher, vi os feixes coloridos nas fachadas ao redor e percebi que, na minha cidade, vivi entrando e saindo dessas estruturas de concreto de onde, de cada uma delas, saí um pouco diferente. Encorajado, triste, feliz, excitado, empregado, desempregado, em luto, em celebração, bêbado, sóbrio. Os prédios continuavam os mesmos, ou quase, por muito mais tempo do que a vida alterava os meus contornos. Eles permaneciam ali, sólidos. Era eu que os abandonava.
Alguns meses depois de alugar um apartamento na Liberdade, recebi as chaves, acionei o elevador até o quinto andar, me olhei no espelho e percebi que as voltas na bicicleta para assimilar a existência verídica de um cotidiano me fizeram perder peso e ganhar musculatura. Por um motivo que ainda tento descobrir, comecei a fumar cigarros. Talvez foi meu encanto com o brilho das embalagens plastificadas, com o amarelo e o azul dos Camels, dos meus dedos que cheiravam à pólvora, da obrigação de me afastar até um local vazio para fumá-los e voltar a pensar melhor. Passei a admirar os alertas nos maços ilustrados com pessoas doentes, broxas, com a pele envelhecida, uma boca sem dentes. As imagens pareciam premonitórias da minha futura condição, uma condição que iria abandonar uma versão anterior de mim e que ditavam meu destino de forma sortida como cartas de tarô.
Enquanto a mulher compadecia, acendi um Camel amarelo e a observei combalida, à deriva. É uma sensação estranha ver os olhos perderem a vitalidade. Eles parecem enxergar algo que nossos olhos vivos não veem, como algum espectro que se aproxima lentamente pela multidão ou um véu esbranquiçado que encobre e os aquece como um manto. Uma senhora ao meu lado começou a orar em voz alta e foi acompanhada por outras mulheres constrangidas por não seguí-la. Outros rapazes passaram a fotografar e a filmar com os celulares. Todos desfrutavam daquela natureza-morta e, ao mesmo tempo poética, provocada pelo acaso.
Na realidade, essas suposições são sobre mim. Estou atribuindo elas a pessoas indefesas ou que, ao menos nesse texto, são indefesas. Embora esteja sob minha alçada de jornalista entrevistar familiares de vítimas de atropelamentos, nunca me ocorreu participar do momento derradeiro de quando uma mulher é atropelada e ainda respira de forma desamparada. Essa antecipação exercitava a minha vaidade. Eu via aquilo que nem os profissionais ou a família haviam visto. Era eu que fazia parte daquela situação ingrata e íntima, uma situação que também me fazia compadecer verdadeiramente ou me fazer verdadeiramente acreditar em que me compadecia pela morte de uma estranha. “Eu poderia ser ela”, foi uma das minhas presunções, também a mais clichê: os planos inacabados dela poderiam ser os mesmos que os meus, as suas angústias encerradas poderiam ser as minhas, as palavras que repeti para diferentes amores, as paisagens que vi, os sabores e aromas dos quais experimentei, também poderiam ter terminado ali, naquele dia, onde eu acordaria normalmente para prosseguir com meus planos minúsculos, assim como ela os tinha até tentar atravessar aquela rua, sua rua definitiva, no Sacomã.
Eu caminhei até o Metrô pensando nos elementos fantasmagóricos da cidade: os donos chineses de uma pastelaria não eram mais os mesmos, uma banca de jornal onde comprei figurinhas da Copa do Mundo de 2002 parecia fechada há muitos anos. Os funcionários do McDonald 's, ainda aberto, há décadas não trabalhavam mais ali, a Lojas Americanas, prestes a fechar em processo de falência, tinha poucos chocolates nas prateleiras com embalagens pálidas, sem os mesmos tons escarlates da minha infância. Coloquei os fones de ouvido para deixar de escutar a decadência. Caminhava pelas calçadas esburacadas com “Paisagem da Janela” do Clube da Esquina. Ao chegar em casa, peguei a bicicleta, saí para pedalar e continuei a ouvi-la até que a realidade parecesse ilustrada pela música. Fumava um Camel entre os dedos e assistia às bocas emudecidas das pessoas que passavam por mim. Via meu reflexo nas fachadas dos prédios e nos vidros dos carros enquanto caminhava. Retornei para o apartamento, silencioso, e assisti aos programas espaciais até dormir e acordar assustado às 3h da manhã no sofá e me levantar até a cama. No dia seguinte, acordei pela manhã, coloquei as roupas para lavar, arrumei os edredons, tirei o lixo do banheiro e da cozinha, lavei os copos. A mulher havia morrido em um hospital do Ipiranga, mas eu iria continuar a fazer todas aquelas coisas.
O luto, dizem, só é sentido com a morte de uma pessoa, um animal doméstico, um ente querido. Como o luto patológico, que chega a matar, ou o luto temporário, com estágios conhecidos que vão da raiva, culpa à aceitação. Sempre tive a crença de que o luto também pode se abater sobre as coisas ainda vivas. Como um amor tão intenso drenado pelo dia-a-dia, como se fosse levado até a rua pelos canos, ou com uma simples mudança no trajeto de um ônibus que nos faz quase esquecer o caminho anterior. Em algum grau, sentia luto pelo abandono da casa dos meus pais, por ter me afastado do meu pai, que continua vivo por aí, luto pelos meus antigos endereços onde ainda chegam cartas e de todas as coisas que cintilavam na minha vida até desbotar sem o meu consenso.
A teoria que mais gosto é a do luto como uma onda, que vem e vai, até gerar um produto estranho de saudade. Às vezes, sinto que iria gostar que uma morte de verdade interrompesse o fluxo das minhas preocupações até que eu fosse centrifugado pelas ondulações, até me dar perspectiva sobre as coisas que realmente são importantes. “E nós, preocupados com coisas tão bobas”, costumamos dizer quando recebemos um telefonema sobre uma morte, em um horário que costuma ser impróprio, enquanto fazíamos tarefas ordinárias e nos preocupávamos com prazos e obrigações tolas. Desejava uma interrupção capaz de canalizar todas as outras queixas, se apropriar delas, e pintar um retrato mais preciso da finitude até que as coisas passadas, enfim, adquirissem o aspecto solidário de me permitir viver dia após dia. Era assim que caminhava até o Metrô, que andava de bicicleta, que esperava as horas serem preenchidas no vazio cortante dos recomeços.
Meses depois de ver a mulher morta no chão, senti meus instintos retornarem. Passei a sentir desejo, fome, sono, a perceber que os móveis que me rodeavam eram meus. Comecei a fazer reparos e a decorar o apartamento. O último cômodo que me propus a consertar foi o banheiro. Demorei mais uns meses para comprar um espelho decente, redondo, colado com fitas dupla-face, que despencou enquanto eu aparava a barba. Não acredito em agouros, mas vi meu reflexo nas partes cisalhadas do vidro e pensei na experiência egoísta da paternidade. De ser pai por medo de morrer sozinho, de ser pai com a consciência de que um dia nós ou nossos filhos irão, de forma inescapável, partir. Ser pai para ter a sensação de assistir à aparência do filho como unidades móveis, com feições que somem e desaparecem nos reflexos, como um vibrante e mórbido caleidoscópio. Percebi que, quanto mais tentava me distanciar da minha natureza e apesar de todas as minhas ressalvas, estava, ano após ano, imaginando como seriam os traços de um filho meu.
Guardei o link pra ler com calma e faça frase fez valer a pena.
grande texto, marcos.