A melancólica histórinha de uma manhã no centro de SP
Um homem com rosto simétrico, os olhos castanhos muito escuros e as pernas alinhadas caminha com fones nos ouvidos e olha para os próprios braços com veias à mostra, os dois criados para distingui-lo do restante dos homens que passam por ele a caminho da Praça da República. Pela composição física, foi-lhe concedido o posto de “o aluno mais focado” de uma academia na avenida São João. O guarda encostado na viatura tem as características estereotipadas de um guarda: gordo, com bigode, um quepe na cabeça, os óculos escuros de grau, a ociosidade. Ele vigia a fonte da praça Júlio Mesquita, que continua sendo um monumento mas não é mais exatamente uma fonte. O trabalho é inútil, ou quase, pois um tapume foi instalado pela prefeitura para impedir os cracudos de tomarem banho, dormirem ou roubarem as lagostas de bronze esculpidas por Nicolina Vaz de Assis do Pinto do Couto que, no passado, existiu até deixar de existir como todos os ainda vivos ao redor da obra irão um dia.
Há uma casa do norte na Barão de Limeira com embutidos e carne seca ao lado de um puteiro com prostitutas idosas e cansadas. Há as lojas de lâmpadas neon na Santa Ifigênia que, lado a lado, parecem compor os trilhos de uma linha férrea colorida. Há pessoas nas ruas com os pés endurecidos por várias camadas de sujeira e também os novos habitantes, que ainda têm chinelos, em barracas de acampamento. Às vezes, enquanto admiro a paixão do beijo de um casal, ignoro que alguém tenha pulado nos trilhos do metrô da Sé. As imagens que deixam de existir e a violência com a qual elas impregnam a mente são fascinantes.
Nas últimas semanas, saquearam uma farmácia e policiais encontraram computadores roubados em um bueiro. Não faz muito tempo, corretores da bolsa de valores instalaram uma escultura de um touro dourado na XV de Novembro.
Esse é o saldo dos anos violentos da pandemia. Os mais sensíveis, como eu, se sentem virtuosos, presunçosos até, pelos próprios choques anafiláticos causados pela realidade. Somos, afinal, observadores do curso inevitável de um acidente. Temos a soberania de um médico que sabe que o paciente está prestes a morrer enquanto o paciente não tem ideia de que vai morrer. Dentro do ônibus, temo o domínio da minha melancolia sobre mim e do meu desespero crescente para evitar ser mais uma figurante no espetáculo das probabilidades na cidade onde eu nasci.
Leitura interessante
A Fabiane Guimarães foi muito precisa nesse texto. Recomendo a leitura da newsletter com esse excelente nome: Tristezas de Estimação.
A crônica retrata muito bem o ambiente que a cidade de encontra nos últimos anos... parabéns pelo texto reflexivo.