O mestre das cobras mais letais do Brasil: parte II (O caronte)
Caso não tenha lido, recomendo a leitura da primeira parte da história.
A cura para tratar o novo paciente estava armazenada em um vidrinho e trancada numa sala com temperatura controlada, onde uma senha libera as portas e câmeras operam nos cantos das paredes. Os seguranças não se esforçam para protegê-la, e nem deveriam. É um item raro, mas sua existência não lhe impõe as ameaças recaídas contra as coisas escassas; naquela noite, a distância entre quem a buscava era sua maior proteção. Os médicos precisavam obtê-la rapidamente para salvar o paciente, que agonizava em uma maca acolchoada em Brasília.
O estado era considerado grave. Poucos minutos após a entrada pela porta de vai-e-vem, menos de uma hora após enxergar as lâmpadas brancas cada vez mais claras e esfumaçadas, os médicos decretaram o estado de coma do homem. Tubos, soro, gráficos, pranchetas e funcionários o rodearam. Hospitais reais não têm o mesmo drama da ficção: a morte e a vida são definidas por sequências numéricas e gráficos. Cabe aos médicos interpretar algarismos e formas geométricas que definirão o futuro daqueles submetidos a este sistema, como num jogo de tarô.
A causa da internação era incomum: uma picada de cobra. A espécie também era incomum: uma naja. Não existem najas na natureza do Brasil e os herpetólogos não perderam tempo para criar centenas de antídotos. O único lugar com uma amostra estava em São Paulo, em uma sala do Instituto Butantan.
A composição de um medicamento, como esse, é feita por muitas mãos - de gente viva e morta. São conhecimentos repassados por milênios, séculos ou descobertos anos atrás. Não há um soro contra todos os venenos. Vital Brazil salvou milhares de fazendeiros ao organizar e extrair veneno do maior número de cobras para criar um arsenal diversificado de antídotos.
A busca por um antídoto - um creme, um soro - também consome a carreira inteira de um cientista. No Butantan, há pesquisadores que há décadas decifram como impedir a morte e os efeitos macabros do veneno de cobras, aranhas e escorpiões. Gangrena, choque anafilático, paralisação dos rins (o que gera uma urina preta), inchaços nos olhos - é o caso da cascavel - e uma morte em poucas horas são resultados dos acidentes entre humanos e peçonhentos.
As serpentes, por outro lado, não têm o menor interesse em seres-humanos. Quando picam é por intromissão ao seu território, para reprimir uma ameaça ou por descuido. São casos chamados por especialistas de “acidentes”; nunca classificados como "ataques". As circunstâncias possíveis não explicavam de que maneira uma naja, nativa da Ásia, picou um estudante de veterinária a dezenas de milhares de quilômetros de onde deveria viver.
Agora Giuseppe recebe o telefonema de Brasília. O paciente morreria sem a amostra, ele ouve. Emergências assim são comuns pelo Brasil, mas não exigem um antídoto tão limitado e criado por precaução.
O antídoto deixaria a sala onde estava guardado e inutilizado para se encontrar com moléculas venenosas que trafegavam no sangue do hospedeiro. O envio aconteceria no primeiro avião até o Distrito Federal, garantiu Giuseppe. Não se sabia o paradeiro da naja, talvez amedrontada e retorcida em um canto escondido da cidade.
CONTINUA…
Leitura interessante
Assine aí o Sobre tudo, sobre nada do Victor de Rosa. Memórias, dicas de livros, filmes, ensaios. Fiquei meio obcecado pela Marylin Monroe após o texto dele.
Dá uma olhada no Newslenta do Christian von Koenig. O nome do cara é chique igual os textos. Edições mensais com contos e dicas artísticas. Muito bom texto, o último.
PS: como vocês podem ter notado, aumentei o intervalo entre as publicações para deixar o texto “dormir” um pouco.
Link desinteressante
As cinzas do americano Fred Bauer, inventor da lata de Pringles, foram armazenadas em uma lata de Pringles. Ele pediu.
Frase desinteressante
"Sapatão move montanhas"
Que honra ser citado numa newsletter que admiro demais! Obrigado!