Pantanal e a história nunca dita dos pilotos de barco num sabádo a noite
Novo por aqui? Bem-vindo! A Desinteressante narra histórias reais de anônimos. Se você não é assinante, considere uma assinatura no botão abaixo. Já é? Se gostar, curta, comente e compartilhe.
O goleiro lançou a bola até Pedro, que percebeu os zagueiros desprevenidos e tocou no Gabigol na entrada da área. Era final do primeiro tempo no Maracanã, onde jogavam Flamengo e América Mineiro. A partida não era importante, e quase nunca é. As finais de campeonato são eventos que parecem sempre distantes. As disputas no meio do caminho interferem na trajetória, claro, mas não condenam e nem enchem os grandes times do mesmo júbilo da conquista definitiva, quando são coroados pela regularidade, estratégia e um tanto de sorte. Para os torcedores, jogos assim são uma distração compulsiva e hipnótica, com acontecimentos simultâneos - as decisões técnicas, a arbitragem, a vida pessoal dos atletas, as lesões, as contratações - em que a convivência entre seres antagônicos e complementares parece nunca ser observado em totalidade, como assistir a um aquário grande e colorido. Gabigol cumpria os dois papéis: o protocolo e o espetáculo. Ele recebeu o passe próximo da pequena área, o goleiro adiantou-se o quanto pôde para fechar o ângulo, mas o chute foi rápido. O gol elevou os torcedores nas arquibancadas ao estado sublime do pertencimento, os interrompeu da monotonia dos dias trabalhados e recompensou o tempo investido em uma barganha com recompensas tão incertas como o futebol. O jogador foi rodeado e abraçado pelos colegas vestidos com o uniforme listrado em vermelho e preto, que logo iriam descer e subir dos vestiários para jogar o segundo tempo, intactos ou quase.
As câmeras de televisão levam o momento por satélites para o Brasil, enviando sinais invisíveis pelo cosmos até um pequeno televisor de um barco no meio do Pantanal. Um grupo de barqueiros assiste às imagens no aparelho. A embarcação sobe o rio Paraguai e, exceto por uma lâmpada excessivamente branca, não se vê às margens na escuridão e ouve-se só barulho da casa de máquinas misturado ao som da televisão. Os homens estão sentados em banquetas, cadeiras, escorados em colunas ou apoiados em baús de ferro onde guardam iscas para a pescaria - peixinhos que se debatem e formam pequenas ondulações no tanque escuro e metálico. O comandante está entre eles. É um homem negro e com movimentos lentos; o trejeito acresce a autoridade e também anuncia a idade. Está sem o uniforme branco alinhado de marinheiro usado na apresentação da viagem aos passageiros. Na noite de sábado, usa uma touca escura com o escudo do Flamengo e parece preocupado com o time mesmo com resultado favorável, alimentando, assim, a precaução aprendida como um homem das águas. As roupas informais causam uma erosão na camada que o preserva simbolicamente distante de seus comandados - o alça às limitações da mortalidade, enfim.
Ao lado estão os barqueiros, conhecidos como piloteiros no Mato Grosso do Sul. O trabalho deles é guiar barquinhos a motor pelo rio, conhecer as estradas d’água, áreas alagadas, regiões de camalotes, desviar de ondas provocadas pelos barcos maiores e levar clientes a áreas de pescaria ou até o porto de Corumbá. São como motoristas ou porteiros: ouvem tudo com discrição, sorriem e são cordiais sem revelar os próprios pensamentos e emoções. Na maioria dos casos, são os pecadores de verdade. Os clientes só pousam para a foto com os peixes nos braços. Os piloteiros sabem preparar a pesca na grelha, a como comê-la cru com limão e sal e quais peixes devem ser devolvidos às águas do Paraguai para a perpetuação da espécie. Os barquinhos deles ficam à disposição e são rebocados pelos grandes barcos-hotéis, onde turistas são hospedados em suítes e atendidos por garçons, como em um cruzeiro em alto-mar.
O apelido e o nome dos piloteiros combinam com a personalidade de cada um, mas é incerto definir qual veio primeiro. São como os Sete Anões. Há o Cabeça-Seca, o Dilsinho... Um deles chama-se Romeu e é o mais sério dos colegas. Todos os dias, ouve a pergunta “onde está a Julieta?” repetida centenas de vezes, por diferentes pessoas e, constrangido, nunca tem uma resposta à altura.
O mais impressionante é o Bugre. O piloteiro tem feições indígenas e olhos muito claros. Não são verdes, nem azuis. Lembram um corpo d’água, calmos e cristalinos, sem analogia ou metáfora. Por coincidência, também é o mais doce do grupo. No celular, Bugre tem centenas de fotos com peixes, como o dourado e o barbado, e um vídeo com uma onça-pintada que atravessa o Paraguai ao lado de seus barquinhos - os colegas o rodeiam para ver o filme novamente ou pela primeira vez. "Os clientes acham que a gente sabe o que fazer quando vemos uma onça”, diz um deles. “A gente sabe: acelera o barco e corre!”. A família de Bugre mudou para Campo Grande e, dos irmãos, só ele ficou. "Todos os dias eu vejo um quadro diferente quando o sol pousa", diz.
Durante o intervalo, um piloteiro traz um imenso caldeirão prateado. É o jantar. O cardápio tem costela cozida, arroz e feijão. Embora delicioso, é o remanescente do almoço dos turistas. A carne é servida em pratos de plástico e os restos são jogados em uma pequena pia onde cada um lava os próprios talheres. Corumbá é quente o ano todo, mas a temperatura cai durante a noite e uma ventania gelada forma ondas no rio. Por isso, os piloteiros estão sempre agasalhados e com óculos escuros até mesmo quando escurece - parecem esquecer de retirá-los. Os ribeirinhos, os moradores da cidade e os indígenas torcem para o Flamengo e times do Rio de Janeiro, como Vasco e Botafogo. No passado, militares da antiga capital foram enviados para a região na Guerra do Paraguai e na ditadura, levando consigo os times de futebol. Nas áreas alagadas do recluso rio Paraguai-Mirim, há bandeiras do Flamengo fincadas na casa de ribeirinhos onde sequer existe energia elétrica. Os moradores também herdaram o sotaque chiado dos cariocas e o misturaram ao érre do sertanejo paulista para criar uma fala peculiar sulmatogrossense.
A frase “é impossível descrever” soa como uma limitação de um contador de história mas, no Pantanal, a descrição da paisagem é dificílima em termos objetivos. O cenário comprova a fé de quem a tem sem distinção de religião, transportando-nos a um estado de estupor e reverência. As planícies são alagadas e distantes. Ao fundo, estão as serras que dividem o Brasil e a Bolívia. São divisões formais dos humanos; no papel, tudo ali forma a cidade de Corumbá e as cercas definem as fazendas e os mandatários dali -- a natureza, porém, é visivelmente indomável e incrível, ordenada e perfeita, enfeitiça o ser-humano e o alicia a tornar-se novamente um bicho selvagem, a desarmar-se das obrigações da cidade; ela nos convida a nadar pelo rio Paraguai em simbiose com o gigante barbado, nos atraindo como uma sereia; nos dá vontade de repousar petrificado enquanto o sol aquece o sangue como fazem os jacarés de aparência jurássica; a desaparecer na mata, indistinguível e esverdeado como árvores onde pousam os tuiuiús; a virar uma entidade lendária, como o destemido carcará cujas garras perfuram olhos e a carne das presas incautas, ou ser consagrada com a majestade da onça-pintada. É difícil compreender o que veio primeiro, se a projeção da poesia e as músicas feitas em homenagem ao Pantanal ou a sensação arrebatadora e primária em vê-lo. É como definir se a matemática sempre existiu e nós a descobrimos ou se foi criada para calcular o indecifrável. À noite, a Via Láctea é visível e se vê todos os planetas e estrelas ordenados e distintos que habitam em um pacifismo astral que, para muitos, influencia quem somos e o que fazemos - e é difícil dizer o contrário. Os satélites trafegam lá em cima e cumprem o papel para o qual foram projetados que, naquela noite de sábado, consiste em transmitir o segundo tempo entre Flamengo e América Mineiro.
O juiz apita um pênalti a favor do Flamengo. A tensão interrompe os talheres, agora repousados sobre os pratos. Gabigol se posiciona para chutar. Um piloteiro extrovertido e vocal imita o narrador várias vezes, com os olhos radiantes e convencido na semelhança que sai de sua boca. “Chama o malvadão”, repete. Os colegas o ignoram, mas a indiferença não parece incomodá-lo. O Extrovertido tem o rosto redondo e as feições indígenas. Há nele uma ingenuidade e uma empolgação que parecem transportá-lo para a infância, quando escolheu um time para torcer e foi metarmorfoseando-se em um homem brasileiro.
O blefe de um pênalti como aquele é feito com os olhos, o corpo e o posicionamento. O descompasso entre os três elementos deve ser imperceptível para o goleiro treinado para detectá-lo nos centésimos entre a vacilação e a ação. É um equilíbrio complexo para um jogador de futebol. Milhares de torcedores gritam a poucos metros e a consciência o lembra das câmeras de televisão, da transmissão do rádio, dos contratos publicitários e esportivos, das entrevistas para a imprensa, da tabela do campeonato, dos times de base que o levaram até ali, do treinamento repetitivo e doloroso nos dias de semana e, quem sabe, da noite mal dormida, da ressaca, dos problemas na família. Gabigol chuta e erra o pênalti. Os piloteiros erguem os braços, o comandante olha para os próprios pés, os garfos voltam para o jantar. A partida continua. O erro é um percalço tolerável para quem já havia feito um gol e acrescentava mais combustível para manter a torcida interessada no que pode acontecer.
O Flamengo é desproporcionalmente melhor do que o América Mineiro no Campeonato Brasileiro, faz mais dois gols e vence a partida. Um piloteiro muito baixinho e com a voz aguda oferece guaraná aos colegas, que formam fila para lavar os pratos enquanto palitam os dentes e acendem cigarros de palha antes de dormir.
Na manhã seguinte, o barco-hotel a caminho de Corumbá tem um problema no motor. Uma falha pode prolongar por muitas horas o itinerário no Pantanal ou causar um atraso de dias. As notícias não são boas. Uma fumaça sai da casa de máquinas e o comandante espera que a neblina diminua e o motor reaja à manutenção. O prazo é de uma hora. “Vamos aguardar”, diz um tripulante. Os passageiros estão ansiosos. Muitos estão com voos agendados para São Paulo e Rio de Janeiro e o tilintar das unhas nas mesas sonoriza a tensão.
“Vamos ter que ir de barquinho até Corumbá”, define o comandante. Os piloteiros, então, organizam-se novamente em fila, embarcam os passageiros e aceleram pelo rio Paraguai. Cruzam a água rapidamente, como peixes, e acenam para todas as casas ribeirinhas e embarcações no trajeto. Estão vestidos com os agasalhos e os óculos escuros. O destino está a uma hora de distância. No caminho, eles passam por casas onde crianças e cachorros vira-latas brincam e acenam de volta ao lado de bandeiras vermelhas e pretas. O Extrovertido brinca com o resultado da noite anterior, mas a frase também contém um sonho. “Será que um dia eles do Flamengo vão vir aqui jogar em Corumbá, contra o Corumbaense? Imagina, sei lá, também o Vasco contra o Corumbaense?”, diz.
Leitura interessante
É impressionante o Prato Feito, do Matheus Habib. Há muitas newsletter sobre alimentação e culinária de qualidade no Brasil e a dele está entre as melhores. Considere a assinatura.
O Vida Vivida do Esdras Pereira vale a tua assinatura. Livros, reflexões, debates. Tá tudo lá. Manda vê e assina.
Link desinteressante
Entre os séculos 19 e 20, o pelinho dos dentes de baleia eram usados para costurar luvas e roupas. A matança quase as extingiu.
Frase desinteressante
"Eu tenho que olhar se ele tá na minha frente?"