A história de quando parei de fumar (ou tentei)
Comecei a fumar prestes a fazer 30 anos. Isso não me deu charme balzaquiano, nem envolveu cigarreiras lindas, mas me tornou em um ser com os dedos cheirando a escapamento e me trouxe a reprovação de praticamente todas as pessoas do meu círculo de amizades.
Eu tenho uma tendência ao vício. Meu pai fumou durante 25 anos e fumava, inclusive, deitado na cama ao lado da minha mãe. Quando era permitido, também dentro dos ônibus, em restaurantes, lojas de departamento. Talvez tenha fumado dentro da maternidade, enquanto eu saía do ventre de minha mãe para começar minha humilde vida no Sacomã.
Viagens rodoviárias pareciam um martírio para ele, que esperava a primeira parada no Graal para fumar um Derby vermelho inteirinho, emocionado. Ele fumava enquanto trabalhava como pedreiro, com a colher-de-pedreiro em uma mão, o concreto na outra e o serviço à frente, como se tivesse cinco ou seis braços de uma deusa hindu.
Meu irmão também fumava. Fumava enquanto jogava videogame, enquanto preparava o jantar - ele fazia um delicioso cupim ao molho madeira com cinzas de Lucky Strike - e, bem, quando estava no banheiro (uma tia disse que ele já acendeu um embaixo do chuveiro).
Eu, por outro lado, nunca havia testado. Na adolescência, até me ofereceram, mas me dava uma crise de tosse com requintes de cachorro gripado. Não havia motivo lógico para fumar. Até que aconteceu. De repente, não mais do que repente, alguém me classificou como chaminé.
Passei a odiar o home office pois a solidão me fazia fumar ainda mais, como se eu estivesse ansioso em alguma cela do corredor da morte.
Comecei com os cigarros Black com gostinho de menta e, em poucos meses, eles pareciam pirulitos sabor cereja. Migrei para os Camel amarelo, com aquele filtro amarelo que faz jus ao fim dele (deixar os dentes amarelos).
Nós vivemos em um Brasil que pode se gabar da lei antifumo que, como dizem, foi uma lei que pegou. Mas é ainda um país abertamente permissivo com o fumante.
Em 2009, o governador de São Paulo José Serra sancionou uma lei que proibiu o cigarro no estado onde nasci e só quem viveu os anos 90 sabe o quão drástico foi esse feito. Até então, fumar era quase um direito constitucional.
No ano de 2020, viralizou na internet um episódio do Roda Viva em que um grupo de jornalistas questionava duramente Paulo Maluf sobre uma tentativa de proibir o cigarro em, veja bem, restaurantes. Só em restaurantes. O vídeo original é de 1995.
“O senhor não exagerou no decreto?”, perguntou Matinas Suzuki Jr., um grande jornalista que, na ocasião, usava os óculos redondos usado pelos grandes jornalistas.
“Todo indivíduo que fuma vai morrrrer de câncer de pulmão”, respondeu Maluf fazendo aquela voz de Paulo Maluf.
Depois, se sucedeu um diálogo memorável.
Um dos jornalistas - havia cinzeiros na bancada dentro de um estúdio fechado - disse que Maluf tinha prazer em tirar a liberdade das pessoas. Dado o histórico político do entrevistado, não era mentira, mas a justificativa foi horrível.
“É igual cinto de segurança. Por que eu sou obrigado a usar cinto de segurança?”.
Veja bem, a imprensa da época me obrigou a concordar com um membro do antigo Arena.
Uma vez, entrevistei o Dráuzio Varella, um ex-fumante. Com a voz calma de quem que largou o cigarro e corre maratonas sem arfar, ele me narrou uma história que nunca mais saiu da minha mente.
“Atendi a pacientes que tinham feito traqueostomia e eles fumavam na cama do hospital pelo buraco no pescoço”. Segundo ele, a nicotina era muito pior do que o crack. E olha que ele trabalhou no Carandiru.
É verdade que o número de fumantes despencou quase 40% no Brasil com a proibição de fumar em lugares fechados, como aviões ou cinemas (!). Mas graças aos trabalhos da Philip Morris, ainda são extremamente em conta.
Um Camel no Oxxo custa cerca de R$ 6 reais, mais barato do que um café no Starbucks ou um pão na chapa com café puro em um bar & lanches. Quando estive em Londres, por outro lado, um maço saía por 12 libras, ou 77 reais. Você trocaria um bom almoço por um cigarro? (Pergunta não-válida para fumantes).
Na minha ida até a França, um dos países mais agressivos contra o tabagismo, um maço custava uns 3 euros nos anos 2000. Hoje, sai por 10 euros, equivalente a uns 50 conto. Quando estive lá, ainda não fumava, mas ouvi relatos de franceses que viajaram para países vizinhos só para voltar com cigarros comprados no Duty Free.
As embalagens na Europa não têm marcas, apenas uma inscrição com o nome do cigarro e avisos de que ele vai te causar câncer de pulmão, impotência e, sei lá, amaldiçoar a sua família por três gerações.
Em 2017, a Anvisa aumentou os alertas nos maços brasileiros, ilustrados com imagens mórbidas como a de um feto abortado, dentes quebrados, um cara com pau mole, um pé necrosado. Para ser honesto, são ainda facilmente ignoradas por quem cresceu com vídeo de acidente de trânsito na internet.
Mas além das advertências, as marcas por aqui ainda são impressas - o belo camelo da Camel, o Marlboro que nos remete ao carro do Ayrton Senna ou a insígnia de xerife do Lucky Strike. São cores que possuem nossas mentes. A lei ainda deixa que os cigarros tenham gostinho de melão, morango, canela, e perfume para deixar nossos dedos com cheiro de sabonete Phebo.
Nos últimos anos, o brasileiro também passou a usar cigarros eletrônicos, um troço brega, que lembra um carregador de celular. Subitamente, as brechas na legislação permitiram lançar fumaça com cheiro de morango de vape até em locais fechados. Alguns praticantes desse hábito, inclusive, ainda são preconceituosos com fumantes convencionais. Hipócritas!
A representatividade fumante também parece ter voltado. Se até dez anos era difícil ver um personagem da ficção com um cigarro, hoje você assiste a uma novela onde um sujeito meio durão ou uma socialite excêntrica fuma um belo dum cigarrão durante as cenas.
Eu não suporto assistir a alguém fumando na televisão. Me dá vontade de fumar na hora. Deve ser o equivalente a alguém viciado em heroína assistir Trainspotting, mas nós fingimos que é só um apelo dramático. Não é mentira. Os cigarros têm esse reforço emocional.
Um personagem da ficção fumante costuma indicar independência, decadência, charme, obsessão ou as quatro coisas juntas num combo da nicotina.
No livro O Museu da Inocência, de Orhan Pamuk, o protagonista passa a guardar as bitucas com marcas de batom da mulher amada e chega a uma incrível marca: 4.213 bitucas coletadas. Há um capítulo inteirinho para tratar desse esporte excêntrico.
“O capítulo em questão contempla, usando o cigarro como mote, temas como as propagandas sedutoras dos cigarros; os prejuízos que eles causam à saúde; o gestual que envolve seu consumo e o status ligado a tal hábito; as tensões que a ampliação do consumo pode gerar em um país tradicional, desde a falsificação e o contrabando até o descumprimento de códigos de conduta familiares”, segundo essa resenha da Ana Luiza Rocha no Deriva.
Em Mad Men, o trágico Don Draper sobe na carreira promovendo o Lucky Strikes. “Até o seu médico fuma”, foi a sacada brilhante do escritório Sterling Cooper. Todos fumam na série. Aí, a agência perde a conta e cria uma campanha publicitária mostrando os efeitos cancerígenos da nicotina. É uma das grandes reviravoltas do roteiro.
Mas há uma grande incompreensão sobre esses alertas. Quem fuma nem sempre tem, assim, tanta vontade de não morrer. Não é um pensamento suicida, mas um certo... Niilismo? Comecei a fumar justamente quando minha vida começou a sair dos trilhos e ele se tornou minha espécie de amigo imaginário embalado para adultos.
Um artigo escrito pelo crítico Peter Schjeldahl em 2019 na The New Yorker narra a descoberta de um câncer terminal causado pelo tabagismo - com todo o eruditismo de um crítico da arte que já viu a representação tragicômica da matéria. O texto tem um ceticismo sobre a finitude sobre uma vida na qual, com ou sem cigarro, estamos fadados ao mesmo fim e que uns (fumantes) escolhem se estressar menos durante o processo.
“Câncer de pulmão, desenfreado. Nenhuma surpresa. Eu fumo desde o 16, quando fumava atrás da arquibancada de futebol do meu colégio em Northfield, Minnesota. Eu tinha medo de morrer jovem e as pessoas cochicharem com aquele ar de sabedoria. ‘Pois é, ele fumava’. Mas aos 77, eu meio que já estou nessa linha de corte”. (Ele morreu em 2022).
Pessoalmente, as imagens desenvolvidas pela Anvisa parecem demonstrar os efeitos dos primeiros dias sem cigarro - um homem com a mão no peito, um olho triste, uma mulher abalada. Sou eu. Mas, claro, os dados sobre a queda no consumo mostram que isso tem sua eficácia.
Sempre fui introspectivo e o cigarro deu a desculpa para sair de uma situação inconveniente - quase todas - e parecer que eu estava indo resolver uma situação em aberto em outro canto do planeta Terra, como o Superman em um dia comum.
Além de tudo, no início sentia emanar um certo charme, como se eu fosse um beatnik cheio de bloqueios criativos para meu próximo grande livro de poesia.
Os primeiros efeitos dessa amizade se abateram contra meu hálito. Minha boca parecia se encher de saliva e sentia que o PH da minha mucosa se alterava.
Depois, foi a vez da minha barba, que passou a cheirar a roupa esquecida dentro da máquina de lavar. Mas tudo valia a pena quando a alma não é pequena.
Informei minha médica de que havia perdido peso, ganhado musculatura, começado a me exercitar. “Isso é muito bom, Marcos”, ela sorriu. Quando disse que havia começado a fumar, senti que a alma dela saiu do corpo em direção a um caminho etéreo. “Aaah, Marcos”. O mundo dela ficou preto e branco.
Peço perdão a todos os junguianos, mas aqui cabe um Freud. Acredito, sim, que haja uma fixação oral no cigarro. Há uma sensação especial ao inserir algo na boca para diminuir nossas frustrações e estimular nosso sistema nervoso. Os cigarros não reclamam, não conversam, eles nos aceitam gentilmente e nos destroem, como o toque da Dona Morte.
Meu incômodo se acentuou de verdae quando joguei um maço inteiro no lixo e, para meu constrangimento, pensei em resgatá-lo do meio das cascas da banana (eu deixei ele lá, como parte da compostagem, e fui na banca de jornal comprar outro). Eles haviam tomado controle sobre mim.
Meu irmão fumou até morrer por outros motivos, mas lembro que meu pai usou adesivos de nicotina para parar. Um fucking adesivo com nicotina, um Salompas reverso.
Segui um rumo diferente. Adotei o método cold turkey, uma parada abrupta de com efeitos horríveis. Me senti cambaleando pelas ruas e arestas do meu domicílio nos primeiros dias, como um figurante do filme da Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída.
É uma batalha. No momento que escrevo, estou há menos de uma semana sem fumar, ou pelo menos tentando. Não consigo levar muitos aspectos da vida a sério, como vocês podem ler nesta newsletter, mas o palhaço está sempre sorrindo até quando chora.
Os cigarros pesam na minha vida e nas minhas decisões, as tornam mais sérias e urgentes - esgotam os recursos químicos do meu cérebro, se nutrem da minha autoconfiança, da minha disposição física e exageram a complexidade dos desafios do meu cotidiano.
No terceiro dia, ainda pingava suor gelado e a percepção de que tudo estava errado no universo. Para mudar um pouco de estratégia, passei a comprar cigarros soltos e a administrá-los como se eu estivesse em uma penitenciária e eles fossem a moeda de troca corrente.
Conto com o apoio dos ex-fumantes aqui da newsletter. Uma pena que não podemos mais conversar nos fumódromos, o melhor lugar para trocar ideia em nossa sociedade. Mas você pode comentar e me enviar um e-mail com seu relato de superação.
Para aliviar os picos da abstinência, estou comendo várias bananas, amendoim, docinhos e, em especial, uma bala chamada Fruittella que tem o gosto convidativo de Dunhill de melancia. Agora só corro risco de ter cáries.
Muita calma nesta hora. Estou investindo mais em crônicas (é esse o termo?), mas em breve as histórias de anônimos estarão de volta direto na tela do seu computador. Me dê um crédito: meus cigarros acabaram.
Oi! Quando eu parei, segui todas as dicas de várias pessoas. As melhores foram correr, escovar os dentes quando desse vontade (o hálito refrescante reduzia a vontade de "sujar" a boca), beber bastante água gelada e colocar um folha de Louro na boca quando desse vontade. Não tinha ordem certa pra nada, usava qualquer técnica até que a vontade sumisse por algumas horas. Usava um app tb, QuitNow que foi legal pra ver o dinheiro que eu não gastava mais com o cigarro. Infelizmente, não encontrei nada que pudesse me oferecer o prazer que o cigarro dava, aquela solidão gostosinha, a oportunidade de pensar na vida, uma sensação de "me basta eu"... até hoje penso que fumar é uma coisa gostosa demais, pena que faz mal hahaha
Nunca comentei aqui, mas o texto do cigarro eu tinha que comentar. Gosto muito dos seus textos, obrigada por escrever e compartilhar.