A história improvisada do homem do meme "a vergonha da profissão"
O que você faria se, do dia para a noite, a sua ineficiência no trabalho - aquela que você esconde - fosse exposta para todo o país? Fábio Lima, dono do restaurante Pé de Fava, andava pelas ruas de Guarulhos à procura da resposta, qualquer uma, que pudesse redimi-lo com a própria consciência pesada e, mais importante, perante a sociedade.
Em uma tarde, ele era um pequeno empresário comum, daqueles que inauguram empresas sem uma matemática simples para se prevenir das dívidas e da falência. Na semana seguinte, era conhecido pela soberba. Na opinião pública, um farsante. Um grosseiro, incompetente. Enfim, um chefe no sentido mais autocrático da palavra: pouco inteligente e mandão.
No celular, Fábio recebia mensagens no WhatsApp e trotes telefônicos. Todos os dias, uma voz na linha lhe perguntava. “Você já desligou o freezer?”, e desligava. Estranhos enviavam mensagens em áudio com a mesma pergunta, que começou a atormentá-lo profundamente. “Você já desligou o freezer à noite?”, seguida por risos abafados. “‘Fomos aí… E va-mos te ma-tar’”, leu, pausadamente. A mensagem recebida por um anônimo no Facebook parecia condená-lo. Quando foi para a cama, não dormiu.
Como pode acontecer com qualquer cidadão nos dias de hoje, Fábio virou um meme. Em 2019, o restaurante Pé de Fava foi reformado por um reality show chamado Pesadelo na Cozinha, apresentado pelo chef francês Erick Jacquin. O especialista visita restaurantes desorganizados e promove uma reforma do espaço, organiza a hierarquia interna, o financeiro e causa constrangimento entre cozinheiros, patrões e garçons. A audiência é forçada a sentir asco das condições de higiene com baldes, fossas e lixeiras filmados em closes.
Fábio achou que era uma boa ideia participar. Ele fez a inscrição e foi escolhido para o programa de estreia da segunda temporada. No trecho mais famoso do episódio, o chef Jacquin descobre que o freezer do restaurante é desligado, à noite, para poupar energia elétrica. O aparelho guardava as carnes servidas no almoço. O apresentador é duro. Para ele, Fábio causava intoxicação alimentar nos clientes. Pior ainda: era a vergonha da profissão.
Na televisão, o episódio passou batido. Na internet, tornou-se uma sensação. Um número incontável de memes em vídeo, imagens e gifs foram criados para repercutir o homem que desligava o freezer à noite. As redes sociais, os números de telefone, o endereço foram descobertos e as ligações e mensagens o perseguiram, cruéis. A vida anônima de Fábio deixava de existir enquanto era eternizada pelo fluxo das imagens. A rapidez dos acontecimentos o lembrou da monotonia dos dias idênticos vividos antes de chegar na cidade grande.
Na memória, Fábio reviveu as tardes em Viçosa, em Alagoas, onde cresceu e viveu até tomar o ônibus para São Paulo no começo dos anos 2000. O pai era pedreiro e a mãe era empregada. “Nunca passei fome, mas passei longos períodos sem comer. Minha sorte é que atrás de minha casa tinha muito pé de jaca, laranja, e muita plantação de cana-de-açúcar”, lembra.
Durante dois anos, ele morou de favor no pequeno apartamento do sogro em São Paulo. Dormiam até na cozinha. Deitado, lembrava dos pais e da infância. Com o tempo, ele e a esposa, Sâmia Lima, conseguiram um apartamento em um conjunto habitacional próximo a uma das maiores favelas de Guarulhos.
Fábio trabalhava como operador de máquinas em uma fábrica de peças para a indústria de cosméticos. Sâmia trabalhava em uma fábrica de pães. Quando um gerente anunciou a aposentadoria, ele se voluntariou em busca de uma promoção e deu ainda mais duro do que o normal. “Eu trabalhei das 7h até meia-noite para ter hora-extra. Me chamavam até de puxa-saco. Comecei a estudar engenharia de produção sozinho para tentar a vaga”, lembra.
Na mesma época, Sâmia engravidou. O marido se alegrou com os rumos da família, mas temia o destino no trabalho. Diz ele, foi vítima de mais uma reestruturação no quadro de funcionários. Em vez da promoção, foi demitido e negociou a extensão do convênio médico para a família. A gestação de Sâmia estava no oitavo mês. “Eu fui para casa e parecia que eu não tinha chão”, diz.
Com a demissão, Fábio e a esposa foram obrigados a retomar o sonho antigo de abrir um restaurante, juntar dinheiro e voltar para as memórias mais hospitaleiras do nordeste onde se conheceram.
Na cara e na coragem e em mais um espetáculo da improvisação humana, Fábio encontrou um sócio e inaugurou uma lanchonete na favela São Rafael, em Guarulhos, sem ter experiência no assunto.
Quando ele me contou isso, fiquei intrigado com esse arranjo tão comum em São Paulo. Restaurantes são negócios arriscados, mas percebo um número enorme de barzinhos, lanchonetes, restaurantes, pizzarias e mercearias abertas sem planejamento, com patrões inexperientes e funcionários perdidos com as comandas. O curioso é que alguns prosperaram, abrem mais unidades e os donos se tornam bons de negócio sem, muitas vezes, seguir quaisquer boas práticas do estudo formal.
Para me ajudar a decifrar a situação, conversei com a doutora em Ciência Social pela Universidade de São Paulo e professora em antropologia na Universidade Federal de Goiás, Janine Collaço, que também é especialista em antropologia gastronômica. Era exatamente quem eu procurava. Ela me disse que, a partir dos anos 50, as lanchonetes foram assumidas por pessoas do nordeste que vinham para o sudeste trabalhar na indústria ou na ainda sofrida construção civil.
Funcionava assim: um membro da família vinha primeiro, comia o pão que o diabo amassou, guardava dinheiro e pagava a passagem para trazer mais parentes para o Rio de Janeiro ou São Paulo. Alguns abriam vendinhas ou restaurantes improvisados próximos de regiões com migrantes com hábitos e paladares similares, como em áreas industriais, empresariais ou favelas.
Era um ganha-ganha. O patrão contratava a própria a família de maneira informal, com salários muitas vezes menores e, aos poucos, o novo funcionário participava do mesmo ciclo: economizava e trazia mais parentes, se casava com outros migrantes e construía uma vida mais confortável.
O menu, então, misturava lanches locais, como o bauru e o x-salada em São Paulo, a pratos nacionalizados, como a feijoada, e os nordestinos, como o baião-de-dois. Os estabelecimentos nem sempre eram padarias, que assavam pão pela manhã. Nem sempre eram lanchonetes, com sanduíches, refrescos e sorvetes. Nem sempre eram restaurantes, que serviam no horário do almoço e jantar, e também não eram bares com drinks refinados.
Eram negócios que escolheram ter dois ou três tipos de atendimento simultâneos ou mesclá-los, como ser um restaurante operário no almoço, servir pinga a qualquer hora e abrir à noite para o happy hour após o expediente. É mais ou menos conhecido com “bar e lanches” ou “PF (prato feito)”. Mas dificilmente será negado um pão na chapa, como em qualquer padaria convencional.
“Apesar de terem evoluído, esses estabelecimentos não costumam servir alta-gastronomia. Em geral, a comida é feita por uma mulher que cozinha em casa e cuja comida o marido considera saborosa. É o suficiente para gerar um negócio”, me explicou a professora.
Com o tempo, um ou outro funcionário se desmembra desse negócio familiar, estuda o ramo e abre o próprio restaurante especializado. Hoje, há restaurantes mineiros comandados por nordestinos e, mais recentemente, de temakerias com sushimans vindos de lugares distantes do Japão, como do Maranhão, Ceará e Paraíba, e que são apelidados de acordo com o estado natal, ainda que um alagoano possa batizado como “baiano” ou Sergipe pelo resto da vida.
Fábio e o sócio acreditavam que a experiência da lanchonete os colocava na segunda etapa da profissionalização, quando poderiam oferecer um só serviço aos clientes. O parceiro lhe ofereceu a abertura de um restaurante em uma rua mais movimentada que, por ironia, fica no bairro Jardim Tranquilidade.
Assim que a sociedade subiu de patamar, logo foi rompida quando descobriram a complexidade do novo negócio. As contas, os salários, o aluguel, os fornecedores. O acúmulo de inconvenientes fez a bucha sobrar inteiramente para Fábio, que pouco sabia o que fazer. “Era só eu, ele e mais uma cozinheira”, lembra a esposa de Fábio, Sâmia, colocada à frente da cozinha.
No primeiro dia de operações, ele estava à espera dos clientes quando um carro parou no estacionamento, mas o passageiro não pretendia almoçar. “Ele queria levar as minhas mesas embora. Como eu iria ter um restaurante sem cadeiras?”, lembra. Fábio havia comprado a parte do sócio, mas também herdou também as dívidas e o pagamento das mesas não foi concluído durante a transação. Foi preciso negociá-las. O valor seria pago assim que o dinheiro entrasse no caixa, implorou, e conseguiu manter as mesas no minúsculo salão.
Ele prometeu, mas não tinha ideia sobre como conseguir o dinheiro. Nas primeiras semanas, as vendas de pratos à la carte não decolaram. Um dia, enquanto tomava um ônibus no bairro, viu a placa de um restaurante próximo com o anúncio: “comida à vontade por R$ 10”. No dia seguinte, ele mandou fazer uma faixa ainda mais convidativa: “comida à vontade por R$ 9,90”. Conflagrou, assim, uma espécie de Guerra Fria com os concorrentes.
A atitude foi tomada sem qualquer planejamento financeiro, mas deu certo. Dezenas de clientes ocuparam as mesas que quase foram levadas embora. As câmeras do programa que seria filmado em alguns meses fazem o restaurante parecer muito maior do que é. Na cozinha estreita, de um imóvel com 80 metros quadrados (contando a cozinha, salão e balcão), Sâmia e a cozinheira sofriam com o borbulho das panelas quentes, se acotovelavam na cozinha e criavam um ambiente horrível.
O restaurante tinha um novo nome, Pé de Fava, mas os cardápios haviam sido impressos pelo antigo sócio e o nome na fachada pertencia a um dono anterior do local. Durante meses, o negócio tinha três nomes diferentes. A truculência e a teimosia de Fábio, mais acostumado a operar máquinas do que lidar com gente, impuseram um clima de guerra aberta com gritos em frente aos clientes. “Todo mundo fazia tudo e ninguém fazia nada”, lembra Fábio.
Para auxiliá-los, surgiu o “quebra-galho” chamado Edmilson Tenório, que também se tornou uma celebridade virtual. É difícil saber qual a função de Edmilson e nem ele consegue explicar.
Magro e com forte sotaque paulistano, o encarregado já trabalhou como pedreiro, granjeiro e coveiro. O último trabalho foi o mais triste que já teve: enlutado, não conseguiu enterrar a própria mãe. Por nove meses, ele acompanhou a internação dela em um hospital público na zona leste de São Paulo até uma insuficiência pulmonar matá-la. Edmilson chorou até perder as forças para se aproximar do caixão.
Desempregado e sem dinheiro, pediu ajuda a Fábio e ofereceu os próprios serviços para pagar uma dívida contraída com o amigo que mal consegue descrever como foi feita. Quando conseguiu o emprego, as câmeras do reality show fizeram uma entrevista com Fábio, que errou o nome de Edmilson, que foi assim escrito pela edição. Seu nome verdadeiro é Edilson. “Hoje eu aderi ao novo nome. Eu virei um personagem”, brinca.
Enquanto isso, a redução dos preços e a comida servida à vontade parecia ser sucesso de público, mas o Pé de Fava não lucrava. Para piorar, ele precisava de mais dinheiro para a compra de um freezer maior.
Contando trocados, adquiriu um modelo antigo em uma loja de eletrodomésticos usados. O aparelho até funcionava, mas criava placas de gelo: as sobrecoxas, linguiças e bifes eram congeladas e transformadas em uma espécie de fóssil da Era Glacial. Fábio e Edmilson usavam uma marreta para escavar os icebergs à procura das carnes compradas no atacado.
Para resolver o enrosco, teve uma ideia que lhe pareceu brilhante: desligar o freezer à noite. Assim, os ingredientes seriam descongelados durante a madrugada e estariam no ponto até o almoço. Além disso, a conta com energia elétrica seria menor e o Pé de Fava poderia aumentar o faturamento mensal. O empresário achou a ideia genial (e ainda acha).
No episódio de estreia da segunda temporada de “Pesadelo na Cozinha”, Jacquin descobre que o freezer de Fábio é desligado durante a noite. O apresentador se revolta e gorfa com o cheiro das carnes descongeladas. Edmilson e Fábio trocam acusações. Ensandecido, Jacquin grita para Fábio:
-- VOCÊ É A VERGONHA DA ‘POFISSÍON!’
O apresentador volta ao salão do Pé de Fava e grita contra as funcionárias:
-- “DESLIGA O FREEZER À NOITCHE?!”, esbraveja.
As duas frases iradas, carregadas de sotaque francês, viraram um meme absoluto com mais de 11 milhões de visualizações só no YouTube em três meses. Os telefonemas, mensagens e ameaças começaram a surgir de todo o Brasil. A coisa havia saído de controle.
Nas primeiras semanas, Edmilson não quis sair da favela onde mora. Fábio recebeu as ameaças de morte. Certo dia, um grupo mal intencionado parou para almoçar e pediu uma carta de vinho e perguntou onde estava o “maître” do restaurante. “Na minha ignorância, perguntei para a Sâmia se ela tinha contratado alguém com esse nome”, desabafa, constrangido. Ele só ia para o trabalho de Uber, com medo de ser reconhecido na rua por um ex-cliente irritado com as medidas sanitárias. “Foram os memes e os youtubers que me salvaram”, diz.
As semanas passaram e, no lugar da hostilidade, curiosos de todo o Brasil começaram a visitar Fábio e Edmilson para uma fotografia. Eles sentiam que a percepção havia mudado. Não eram mais os culpados de um grande crime, mas celebridades tragicômicas da internet. “O freezer é mais famoso do que a gente. Virou um ponto turístico de Guarulhos”, disse Edmilson.
Meses depois da fama, Fábio parecia mais sorridente. Um churrasqueiro com uma camiseta do Corinthians e um boné laranja havia sido contratado e oferecia linguiças, lombo e costela à vontade. Adolescentes pediam para conhecer o freezer e tirar fotos. Um fã deu para Fábio uma camiseta com o meme estampado e a frase “vergonha da profissão”.. Enquanto isso, Edmilson acompanhava todos os pequenos acontecimentos do horário de almoço, embora fosse impossível saber se ele, de fato, fazia alguma coisa para ajudar no expediente.
Fábio planejava usar o sucesso para ampliar o restaurante e começou a usar termos como “metodologia de trabalho” e “plano de negócios”. “Se eu souber aproveitar desse momento, a geração que curtiu o programa vai lembrar de mim quando falarem sobre o Pé de Fava daqui a dez anos. A fama só passa se você não souber aproveitar”, disse para mim, em uma rua de Guarulhos.
Mas assim que fui embora e o Pé de Fava deu certo, a família foi obrigada a fechá-lo poucas semanas depois pela pandemia. As dívidas cresceram e, para evitar uma tragédia financeira e psicológica maiores, Fábio vendeu o restaurante, ou pelo menos a marca Pé de Fava criada de maneira despretensiosa. Em partes, o antigo restaurante e seu habitat fantástico narrados pelo programa - a informalidade, o despreparo, os letreiros improvisados - deixaram de existir.
Uma empresária comprou os direitos, transferiu o negócio para a zona norte de São Paulo e contratou um chef. O atual Pé de Fava oferece quiabos salteados na frigideira e opções com nomes refinados, como picles de cebola-pérola, pelo dobro do preço do cardápio de Fábio. “Os pratos continuam nordestinos, com a diferença de serem preparados com um toque de delicadeza que não os descaracteriza”, classificou Arnaldo Lorençato, crítico de gastronomia da Veja São Paulo.
Honestamente, imaginei que seria o fim daquele homem. Os planos dele não me convenceram e imaginei que ele continuaria a apostar alto demais em situações imprevisíveis. Também me lembrei de pessoas que tornaram-se memes, ficaram deslumbradas, largaram tudo e voltaram para o ostracismo muito pior do que estavam, como o pai do garoto que cantava o “Pintinho piu”. É a própria natureza do meme: ele costuma causar a própria decadência quando passa a rir de si e, com exceções, duram só alguns meses no imaginário até serem transformados em campanhas publicitárias constrangedoras.
Acontece que Fábio foi chamado pela Bandeirantes para apresentar um programa onde ele retorna aos restaurantes reformados por Jacquin. Em um dos episódios, ele visita o Cachorrão, dono de um restaurante que trabalhava bêbado, torrava a paciência da esposa e, na maior parte do tempo, parecia desorientado sobre os afazeres do dia-a-dia e apaixonado por si mesmo. Após o programa, ele profissionalizou o restaurante instalado na rua mais tradicional do Bixiga e, até onde se tem notícia, parou de beber (durante o serviço).
Fábio também reabriu o restaurante no mesmo local, mas com outro nome: agora o chama de Do Litoral do Sertão, o quarto título desde que assumiu o ponto. Diz ele que uma das novas funcionárias foi uma das maiores haters do estabelecimento na internet. Um novo freezer foi comprado e mantido ligado, sob a supervisão de Edmilson. À noite, o salão foi aberto para um grupo de forró, apresentações de stand-up comedy e publicidade para açougues e cabeleireiros do quarto.
Em janeiro de 2023, mais de três anos após ser tachado como a vergonha da profissão, o novo programa de Fábio foi reagido por Casimiro e recebeu mais milhões de visualizações no YouTube. O novo sucesso dele, que me parecia fadado à memória efêmera da internet, me fez pensar na beleza do improviso e da teimosia do brasileiro, duas características que, apesar de erradias, fortalecem nosso estranho estado de espírito contra as várias possíveis catástrofes da vida íntima e social. E que desligar o freezer à noite é uma péssima ideia.
Leitura interessante
Relembre a história do operador de karaokê que odiava karaokê. O texto é da Laura Reif.
Falha ao renderizar a expressão LaTeX — nenhuma expressão encontrada
Que texto maravilhoso! Obrigada por escrever essa história :)
demais essa história!